sexta-feira, 13 de abril de 2012

Avesso

O avesso de minha vida é o meu medo.
O nada, este escuro infinito,
A finitude dos corpos e o cheiro de barro.
O cheiro de barro, de lama. E a chuva que não para, dentro de mim.
Este avesso que revela a costura mal feita, o rasgo, o talho em um tecido que parecia tão belo.
O momento em que a linha e o pano se confundem, no avesso.
É neste avesso que moro, que sou, que me desconheço.
Neste avesso que não entrego, que nego, que escondo.
E é ele que complica tudo.
Neste avesso em que me perdi, não sei revelar o que fui.
Sei que estive lá, que de lá fugi e hoje não sei voltar.
Meu medo, meu grande medo, é voltar pra lá sem perceber.
No avesso desta que hoje sou está escondida a linha que desmancha toda minha vida.
No avesso de mim, mora alguém que não conheço...

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Espirro do anjo

Este texto foi publicado originalmente no blog "Aspirinas e Urubus"...http://aspirinasurubus.blogspot.com.br/2011/06/o-espirro-do-anjo.html
percebi hoje que tenho vários textos lá que não publiquei aqui...acho que vou trazê-los todos para cá...
começo por este, em homenagem a um amigo querido.


O Espirro do anjo.

Hoje, ao sair de casa, pude por alguns minutos observar meu vizinho pintando as grades do portão de sua casa.
Casa onde mora com sua esposa e seu filho caçula.
Enquanto eu o olhava minha mente foi inundada por recordações de uma infância que parece ficar cada vez mais remota.
A casa dele, assim como é a minha, pertence a sua família a mais de três décadas.
Faz tanto tempo... Mas olhando-o lembro que já fui criança um dia.
O mandamento de me tornar como uma criancinha ou não verei o reino dos céus parece ter sido esquecido por mim há muito tempo.

Olhando-o lembrei de alguns poucos dias nos quais eu ser uma criança não era feio.
Sim, pois tem pais que ‘teimam’ em criar seus filhos não para serem adultos honrados, mas como se já fossem adultos.

Olhando meu vizinho hoje cedo eu me lembrei – me do pai dele: Senhor Vicente...
‘Seu Vicente’, para os íntimos, o caminhoneiro da ‘cegonha’.
Todos que moram a mais de 20 anos na Rua ‘da Biquinha’ lembram dele, posso apostar.

Caminhoneiro por profissão ele se ausentava por longos meses.
Mas se existe algo que ficou em minhas memórias de infância são os gritos de alegria dos seus filhos quando entre uma e outra carga ele ficava algum tempo em casa.

Lembro-me de em uma noite fria; ao menos em minha memória aquela noite foi mais fria do que as outras e a solidão infantil doeu mais no meu peito; pois bem na tal noite fria, que não posso datar tanto tantos são os anos que de lá pra cá se foram, mas arrisco que eu devia ter no máximo 6 anos, portanto lá se vão 30 anos, na tal noite o caminhão dele ‘pousou’ em nossa porta, explodindo com seu ‘barulhão’.
.As crianças, meus saudosos amiguinhos de infância, desceram por seu longo quintal gritando:
Pápa!! Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!! (Os filhos os chamavam de Pápa, sem o ‘i’ no fim, se sobre o frio não posso dar certeza, isto eu afirmo!)
Ouvi os passos rápidos deles no corredor ao lado de meu quarto e depois só a bagunça de gritos e muitas risadas.
A alegria deles com a chegada do pai foi algo que nunca esqueci.

E o ‘Seu’ Vicente mudava meus dias também.
Os espirros dele são lendários.
Até hoje tento imitá-lo.
Eram daqueles espirros de fazer gosto, bem altos, bem molhados, espirros dado por gente que não tem medo de ser feliz.
Depois, às seis da manhã, ele colocava o “bichão” pra aquecer o motor.
Eu ouvia os meninos mais velhos dele o ajudando com o caminhão.
Aquele ruído logo cedo não incomodava.
Eram ruídos de crianças felizes.

Não sei que tipo de pai ele foi.
Não sei se seus filhos têm dele boas ou más recordações.
Mas sei que em mim ele deixou doces recordações de infância.
Lembro que ele organizava competições entre as crianças na rua.
Competição de corrida pelo quarteirão.
‘Seu Vicente’ dava dinheiro a quem ganhasse e doces para todo mundo.

Estas eram uma das poucas vezes que eu me permitia competir.
Nunca gostei de esporte de competição.
Meu fôlego sempre faltava e eu ficava envergonhada por perder.
Mas com o ‘Seu’ Vicente por perto não era assim.
Ele chutava para longe minha vergonha de ser criança.
Ele nos empurrava e dizia: “Vamos menina, vamos, é só uma brincadeira!”

Ele construiu pouco a pouco a casa que deixou para os filhos, durante a construção com a chegada dos blocos, das pedras e areia, ele pagava a molecada para carregarmos bloco, areia, pedra, quintal acima.
E fazia isto de um jeito tão divertido que nem notávamos que ele estava nos ensinando o valor do trabalho!
Outra lembrança boa: as moedas que ganhei carregando os blocos da construção da casa do ‘Seu’ Vicente renderam bons lanches de “pão-com-ovo” que eu comia me lambendo, seguida por minha mãe e irmã do meio.
E renderam também muitos chocolates que tinham um sabor melhor pois eram comprados com meu dinheiro!
‘Seu’ Vicente em casa era certeza de fartura até para os vizinhos.

Ele se parecia com um anjo moreno.
Era redondo.
Bem redondo mesmo.
Seus cabelos cacheados.
E no rosto sempre um riso fácil.

Hoje, ao ver meu vizinho, seu filho do meio, pintando o portão, imaginei o ‘Sr’ Vicente ali ao lado do filho, sorrindo.
Anjo moreno, agora com asas.
Meu coração se encheu quando eu consegui ouvi-lo dizer:
“- Vamos menina, vamos, é só uma brincadeira!”
Sorri.
Meus lábios quase se abriram em resposta, mas achei melhor não assustar as pessoas falando com quem já não se vê entre nós.
Em silêncio respondi:
_ Eu prometo que vou, ‘Seu Vicente’. Prometo que não vou esquecer que isto aqui não passa de uma grande brincadeira.

Sai de casa jurando brincar como uma criança todas as vezes que me permitirem.
- E quando não permitirem, ‘Seu Vicente’, prometo fazer bagunça, muita bagunça

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