sábado, 22 de setembro de 2018

O Trem é meu

Nascida e criada em São Paulo, filha de paulistanos, descobri que amava esta cidade quando casei com um mineiro.

De tanto ouvir ele elogiar suas terras, a comida, o sotaque, o queijo, o café, as paisagens, tudo sempre muito melhor que aqui, acabei por agarrar um certo “ranço” desta falação toda e a inquirir o que diabos ele tinha vindo fazer aqui, já que nada prestava.

Ele sempre respondia: “trabalho, trabalho é o que nos traz, todos, para cá. Aqui pode faltar emprego, carteira assinada, mas trabalho não falta. Aqui se vive até do lixo. ”

Pois é. Aqui se trabalha o tempo todo. Mesmo quando não se trabalha.

Os trens estão sempre superlotados, levando e trazendo as gentes de todos os cantos. Em sua maioria, levando e trazendo de seus empregos. Fico pensando como será quando resolverem o problema do desemprego. A CPTM (Companhia paulista de trens metropolitanos) que já vive em colapso irá transbordar, definitivamente.

Mas os trens também dão emprego a muita gente.

No trem tem cancioneiros, pedintes, atores, músicos, e sobretudo vendedores, muitos.

Paulistano não fica desempregado, paulistano vende água no farol. Ou no trem. Aliás no trem vende-se de tudo

Ralador de queijo, descascador de batatas, controle universal para televisão, salgadinhos, balas, biscoitos, carregador de celular e se você souber esperar vende-se até o celular, que pode ter sido roubado de outro passageiro, como você.

Vale lembrar que é proibido o comércio ambulante nos trens. Somos todos cúmplices, comendo a batatinha.

Mineiro chama tudo de trem, mas trem mesmo, com a nossa proporção, Belo Horizonte não tem.

O trem aqui é rotina, é parte fundamental das paisagens.

Sou moradora do extremo lesta da cidade de São Paulo, justamente ao lado de uma das mais movimentadas estações de trem de todo o município.

Quando criança meu pai, que vinha nos ver periodicamente, me levava para passear de trem. Me ensinou tudo. Esperar na plataforma antes da faixa amarela, entrar no vagão antes do sinal, dar lugar para os idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais, segurar-se nos apoios quando estivesse de pé. Mal sabia ele que eu nunca sentaria e que jamais seria necessário segurar-se: a multidão exprimida faria isto por mim.

Nós, os moradores da periferia, chamamos o centro da cidade de “ São Paulo”. Como se fosse outro mundo, outra cidade. E as vezes acho que é. O mundo acaba em Itaquera, do lado do estádio do Corinthians, de lá para cá ficamos esquecidos, povoando uma parada de trem onde levamos mais tempo para entrar na estação do que no percurso pretendido.

Filas intermináveis se formam as seis da manhã, rodeando toda a passarela, saindo até a rua e ganhando tamanho calçada afora.

Mesmo assim, com suas intermináveis filas, o trem é para mim o melhor transporte de minha cidade.

O trem é lúdico, quase que romântico. O trem tem poesia. O trem tem, inegavelmente, calor.

O trem com seu embalo, tem algo que nenhum outro transporte possui. Ele te chacoalha, quase te colocando para ninar, e aos solavancos te acorda, lembrando que ali não é ninho.

O trem, com sua interminável distância entre uma estação e outra, permite que se crie laços.

Houve um tempo em que os grupos se dividiam em vagões: o vagão dos evangélicos, onde se entoavam hinos ao Criador e depois sempre um sermão falando de amor e perdão, onde todos podiam se aconchegar; o vagão do baralho, da cacheta, do buraco, onde era impossível dormir ao som dos brados dos jogadores, o vagão do samba, onde sempre rolava um pagode, uma paquera e por fim o vagão dos maconheiros. Sim. Maconheiros. Era permitido fumar cigarro nos trens de minha meninice e daí para a maconha era um pulo.

Nos últimos anos nada disto é permitido mais. Mas os laços continuam sendo criados e os vendedores continuam encontrando clientes e cúmplices.

O trem não perde seu balanço.

Quando estive na cidade de meu esposo não pude deixar de pensar: ele não tem trem.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 20/09/18)

O Rato


A ratazana do nosso amigo cronista trouxe à minha memória as diversas ratazanas de minha vida.
Não falo daquelas subjetivas, para as quais não damos, nem temos jeito.
Falo do bicho, o rato, o roedor.
Meninice miserável por infinitos motivos que não os sociais, os ratos foram companhia de quase toda minha infância.
Horripilantes, subiam pelas paredes, construíam suas tocas dentro do reboco, tomavam conta de tudo.
Pariam suas crias minúsculas em ninhos construídos por todos os cantos da casa abandonada.
Nós, eu e minha irmã, fugíamos deles como podíamos. As vezes simplesmente não podíamos.
Eles saiam do saco de pão e tínhamos de deitar fora aquele que talvez fosse o único alimento do dia.
Resumo da ópera: os bichinhos infernizaram boa parte dos meus pesadelos por muitos anos.
Adulta, vida tomou outros rumos, pegamos o boi pelo chifre e passamos a ter vida decente. Em uma vida decente não há espaço para roedores, sobretudo os ratos.
Todavia, eles pareciam dispostos a voltar. Ao menos um estava lá. Eu, e toda a família, sim, agora a casa tinha uma família, percebemos.
Tudo começou com a banana.
A fruteira que descansava sobre a mesa aparecia revirada, as frutas com largos buracos, o interior da banana devastado.
Colocamos a fruteira em cima da geladeira. Não adiantou.
Dia seguinte, lá estava a prova de que o bicho é ótimo escalador.
Recheamos o interior da banana com chumbinho, produto clandestino, irregularmente utilizado como raticida, a fim de finalizar o bicho.
Não adiantou. O infame comeu todo o contorno da fruta, as regiões não prejudicadas pelo veneno e largou o resto lá, num gesto de profundo desdém com as tentativas humanas.
Mal sabiam que o avô do rato em questão, morrera desta forma, deixando as novas gerações o aprendizado de rejeitar qualquer poção de chumbinho que acaso lhe fosse oferecida.

Pois bem, sendo assim, restou a brilhante ideia de colocar uma ratoeira.
Sim, ratoeira. Descobrimos que existem ratoeiras de vários tipos. Escolhemos a que parece uma pequena gaiola, que se fecha, tão logo o bicho entra.
Dito e feito, armado o bote, pegamos o sujeito.
Dia seguinte lá estava ele.
Pequeno.
Olhos miúdos, pretos. Pelos cinzentos.
Patinhas minúsculas.
Merda!
E agora? Fazemos o quê? Damos uma paulada nele? Afogamos? Jogamos álcool e acendemos o fogo?
É só um roedor. Merda! Mil vezes merda!
Não dá para matar a pauladas um filhote peludo. O que fazemos agora?
Por um segundo tudo perde o sentido, a higiene, o medo, o nojo.
Caramba, é só um bichinho.
Ok, é feio. É sujo. Mas é só um rato, catzo.

Bóra, lá.
Rato na ratoeira, família inteira dentro do carro.
Destino? A pedreira do bairro.
O filhote de roedor olha a cela aberta, horizonte de pedras, água, resquícios de passagem humana.
Não podia ser verdade. Eles estavam libertando-o.
Saiu, reticente.
Certamente iriam persegui-lo, acuá-lo, espancá-lo com uma vassoura.
No mínimo lhe dariam para alimentar o bicho cativo da casa, o gato.
Mas não. Ganhou o mundo, livre.
Correu pelas pedras sentindo o cheiro de mato, água e restos de alimentos pelos cantos.
Depois de ganhar certa distância olhou para trás, na certeza de que nunca esqueceria aqueles três pares de olhos que o fitavam.
Contaria aos seus netos roedores sobre o dia em que uma família o amou um pouco. Só um pouco.
E eu, a humana do lado de cá, com meu esposo e filha, pude enfim voltar para casa e deixar naquela pedreira, livres, todos os ratos de minha infância.

(Postado no blog aspirinas.urubu.com em 13/09/18)

Dois botões no metrô


Quem a visse agarrada aos dois botões de rosa daria pouca importância diante das circunstancias. São Paulo, horário de pico. Milhões indo, sabe-se lá para onde. Milhões vindo, sabe-se lá de onde. Mas todos resolvem ir e vir, no mesmo horário, e temos a impressão de que todos vão ou voltam do mesmo lugar. Com muita pressa e, às vezes, com muita raiva. Sabe-se lá o motivo.

O fato é que a raiva os faz expor o pior no meio da multidão, na hora de entrar ou sair do transporte coletivo. Talvez seja apenas raiva da vida, de suas incapacidades de serem felizes. Talvez seja raiva do outro: a culpa é sempre do outro. O pai, a mãe o irmão, o amante. Quem tem raiva da vida termina tendo raiva de tudo. Até dos amores.

Enfim… multidão raivosa ou pacífica, como bois conduzidos pelo berrante. Neste horário, sempre multidão. E multidão espremida, antes mesmo de embarcar, esmagados. A plataforma é na estação Brás. Metrô. Transferência gratuita do trem. Uma das muitas experiências extremas de desconforto que o transporte público nos oferece.

Proximidade absurda, beirando a desumanidade.

Corpo com corpo, rosto no rosto, o suor do outro logo será teu também. O cheiro. O toque. As bolsas. O desrespeito que às vezes surge. Quase sempre não. Exercita-se na marra a capacidade de amor ao próximo, você ama muito, ou se torna um psicopata. Paciência a toda prova. Paciência. Isto ela tem de sobra.

Afinal, fora esta paciência heroica que lhe premiou com aquelas rosas.

As rosas. Sim, os dois botões de rosa......que carrega agarrada, junto ao peito. Eu a observo, quase velando por suas rosas. Percebo sua inexperiência urbana e a protejo como um escudo. Afinal, ela tem flores, flores agarradas ao peito. Percebo que sua paciência tem algo de supersticioso. Me aproximo dela emburrada pela multidão que caminha em direção aos trilhos em um balé perigoso. Cair nos trilhos àquela hora equivale a atrapalhar o trânsito e ser enterrada como suicida. São Paulo é assim. Breve te mata, mais rápido te enterra e te culpa.

Sorrio. Mais um pouco meu corpo se cola ao dela. Percebo seu medo, não de cair no trilho, mas de que eu esmague suas rosas. Sorrio de novo e a protejo aos empurrões enquanto embarcamos. Suas rosas intactas, estamos dentro do vagão. Ela percebe meu sorriso cúmplice e sorri de volta e quase no mesmo instante começa a contar sua história.

Ela soma agora 50 anos.Trinta e três anos. Esperou trinta e três anos pra receber aquele pedido de casamento. Ainda menina, 17 anos, no interior de Minas Gerais, conheceu o amor. Mais uma daquelas histórias que não se sabe como, nos desencontros das bocas, se perdem pela vida. Eles se perderam. E casaram com outros amores que a vida lhes trouxe. A vida se encarregou de distanciá-los, mas nunca foi capaz de fazê-los esquecer. A mesma vida cuidou de traze-los de volta. Ela separou-se. Ele enviuvou.

Viúvo tratou de voltar a Minas Gerais. Quase que fatalmente a reencontrou. Mas, cidade pequena, mulher separada, já muito falada, melhor evitar.

Ela o deixa partir, de novo. Mas São Paulo é grande, tão grande. E ela, corajosa, tão corajosa. Aqui existe espaço para amar com menos culpa. Não sem culpa. Pois a culpa é recheio e cobertura de todas as religiões e sociedades. Mas São Paulo, tão imensa, lhe permite esquecer a condenação alheia. Lá vem ela aceitando o convite para jantar. Cruzou o estado para jantar com ele, me conta sussurrando. E jantaram.

Mas a fome que tinham não se resolvia na mesa do restaurante. Era fome de dizer o que não foi dito, por tantos anos. Fome daquelas que se descobre, rápido, que na verdade é melhor não dizer mais nada. Não é preciso. E desta vez, as bocas se desencontram, mas se descobrem no corpo. E ali se encontram. E se perdem de novo, num vai-e-vem que tem o intuito de desvendar segredos e partilhar fluidos. Vejo no rosto dela o gozo que não pode contar.

Na manhã seguinte antes de o relógio gritar, o pedido:“Casa-te comigo, porque tu és o ar que respiro.” Não há tempo pra pensar. Nem tempo para responder. São Paulo não para. Sai apressada, não pode perder o horário na rodoviária. No caminho deixa o buquê mas recolhe dois botões. As rosas a lembrariam que havia um pedido a ser respondido. Aqueles botões lhe convenceriam que havia sentido em tanta espera. Eles fariam dela, alguém especial na multidão.

Os dois botões entraram na estação Brás e saíram na estação Sé. Intactos. Protegidos por meu olhar atento. olhar que a viu se perder na multidão da estação Sé, na multidão anônima. Nunca soube se um dia ela aceitou o pedido. Isto não importa…afinal…é horário de pico em São Paulo e eu preciso ir.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 06/09/18)

A Louca

As roupas sujas, o cabelo despenteado, seu olhar perdido.
A noite toda parece estar dentro dela.

A voz rouca não sabe cantar, a boca seca como seca é a vida.
Os braços que outrora produziam sons, agora pendem ao lado do corpo e nada parece fazer sentido.
A rua longa.
As pessoas, todas, insuportáveis.

Em sua insanidade ela pensa que não a enxergam.
Acredita que só ela vê tudo, pensa que seu corpo enfadonho esconde-se atrás de seu silêncio. Se não responder será como se não estivesse ali.
Então se cala.
Ouve, mas faz que não está lá.
Calada pensa que se torna invisível e invisível não precisa ser gente.
Não precisa mais ter imagem, ter rosto pintado, boca manchada pelo batom.

Pode esquecer os cabelos em um novelo, como se fosse lã abandonada.
A pele sem vida, as mãos ásperas.
O corpo encurvado, que sangra todo mês, insiste em lembrar que ela ainda está ali, mas ela pode mentir, dizer que não viu, que não sabe, que não é.

Anda pelo quintal com fome.
Ela ainda sente fome.
Tanto faz se é dia, se faz sol, se é frio. Não sente frio mais.
O frio que vem de fora não pode alcançá-la. Nem o calor. Nada a alcança.
Nem a voz delas.
Nem a ausência dele.
Só as pedras que junta nas mãos e carrega para um canto do quarto.
Só as pedras a tocam.
As pedras que junta na mão e com calma escolhe no quintal.

As pedras estão ali. Ela não.
Ela já se foi, e só o corpo que sangra, permanece andando pelo quintal.
Louca. Insana. Completamente sozinha.

(Postado no blog www.aspirnas.urubu.com em 30/08/2018)

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