terça-feira, 2 de outubro de 2018

Fragmentados

Nossos corpos no espelho.

Nossa altura, nossas mãos, nosso tom de pele.

Teus olhos sobem por minhas curvas indo de uma tatuagem a outra.

Elas combinam e eu gosto.

Me aconchega melhor no teu abraço, me enlaça com tua perna e o espelho é uma pintura. O espelho está lá, mas nós já não o vemos.

Nos minutos contados das horas todas que temos, perdemos a noção de espaço, o espelho quebrou. Em cada marca dos nossos rostos, no flagelo de nossos corpos, os anos. Todos os anos que nos separaram. A tua boca desenha a minha, tuas mãos me procuram, me encaixam, nossas pernas se perdem e nos teus olhos me vejo inteira. O espelho quebrou, teus olhos não, e eles refletem os meus.

Gosto quando as gotas do teu suor caem sobre mim, molham, aquecem, sinto teu cheiro nelas. Me ensopa com teu calor, me invade cheio de vontades, me sacia com tua força.

Os cacos de vidros, do espelho quebrado, se espalham pelo quarto, se perdem nos lençóis e nos cortam. Não sentimos nossos corpos e nossa cama tem sangue. As paredes têm sangue, tua boca tem sangue. Tantas promessas perdidas em noites mal dormidas e o sangue nos cala. O sangue que do meu corpo jorra derruba as paredes. Não temos mais teto, o céu é púrpura. O sangue é meu. Os cacos do espelho furam minha carne e o espelho sou eu.

Meu rosto no espelho fragmentado, pedaços de mim, sem você eu não sou.

O céu desaba sobre nós. Em gotas pesadas, lavam nossa cama, tiram o sangue da minha pele branca, arrastam os cacos do espelho para longe de nós. O que somos se esvai com os cacos, com a chuva purpura do céu púrpura. Minha boca já não te encontra e o silêncio nos sufoca. Já não temos o chão. Sem teto, sem paredes, sem ter onde pisar, só nos resta a cama com seus lençóis manchados. O espelho quebrado não reflete nossa pele, sem o espelho não sei quem eu sou.

Recolho em meio aos lençóis os poucos cacos que restam. Me corto, me rasgo, não tenho mais sangue. O espelho quebrado levou consigo todos os meus planos. A cama flutua a ermo no ar e o céu nos redime.

O sangue que jorra do espelho quebrado lava o horizonte. Todos os caminhos têm sangue.

O espelho partido leva para longe de nós o que temos. Já não somos e nem percebemos.

(Texto postado originalmente no blog www.aspirinas.urubu.com)

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