quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Minha escrita

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Meus olhos passeiam pelos livros sobre a estante e vejo muitos que ainda não li. Como objetos de decoração enfeitam minha sala e me lembram sobre quem sou. Leio meus velhos textos, alguns perdidos em minhas pastas de arquivos outros publicados em meu blog, esquecidos com apenas cinco visualizações. Nunca me importou que não leriam os meus textos. Me importa escrever, enquanto escrevo eu vivo, eu sou.

Dia destes, nas redes sociais, havia uma postagem perguntando quem passaria três meses em uma cabana no meio do nada, sem energia elétrica, sem internet, sem celular. Percebi que ficaria, tranquilamente, em um lugar assim. Nesta hora senti a dor de pensar em não ter caneta e papel. Não sou capaz de viver sem escrever, escrever sempre foi minha primeira necessidade.

Quando eu era criança, fiz um pequeno caderno de poesias. Tentava rimar a vida com letras infantis. Em uma de minhas rixas com minha irmã ela rasgou o caderno. Primeira vez que entendi que minha escrita seria para sempre minha vulnerabilidade. Eliminar o que escrevo seria para sempre uma maneira direta de me atacar.

Anos mais tarde, pouco antes de consumar meu divórcio, meu ex-marido juntou todos os meus cadernos e os jogou no lixo do banheiro, fez um monte no quintal e ateou fogo. Primeira vez que entendi que minha escrita pode ofender. Ofende não explicar, não dar nomes, ofende quando canto o conto e não explico se é meu, ofende sentir o que o outro sente, fazer verso com a poesia alheia, compor uma crônica e pode falar de quem eu quiser.

Ofende, pois meu sentir é antes de tudo efêmero e pode ser, inclusive, seu. Minha escrita não tem dono, fala de mim e fala do outro. Fala do amor que minha amiga conta, fala da saudade que temos e que arrastamos sem nunca, nunca, confessarmos.

Escrevo como quem costura, ponto a ponto, sem o menor compromisso com o manequim. Eu rasgo minha escrita e a reconstruo com rendas e babados, com cores e adereços, pinto e bordo este tecido fino, tão branco, que é a folha na tela do computador. Eu escrevo cantando pelas ruas, trechos perdidos que gravo em áudios, na esperança que cada frase faça um dia sentido. Eu escrevo como quem confessa o amor que tenho e nego, escrevo como quem mente e vive, como quem chora e morre. Minha escrita será minha única herança e meu maior desassossego.

Escrevo para dizer que vivo e viva permaneço em cada letra.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O Tempo e eu

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Nestes anos todos quanto de mim ficou pelo caminho e principalmente quanto do caminho ficou em mim.

Mudei de emprego. Trouxe comigo amigos queridos e fiz outros pelo caminho.

Profissionalmente devo dizer que aprendi, reaprendi e aprendi de novo, justamente aí descobri que deveria aprender tudo novamente. E assim, sigo ganhando meu pão como quem brinca, pois quem trabalha com o que ama recebe salário dobrado.

Também casei de novo. Pois é cara, eu fiz isto. Nos últimos anos casei pela segunda vez.

E faria de novo. E de novo. Quando já se perdeu tanto no caminho você perde, também, o receio de perder mais. Ser feliz não é um risco. Ser feliz é uma escolha. E eu escolho ser e fazer feliz, nada menos.

Minha filha cresceu. O tempo passou tão depressa, de fato, tanto tempo fez dela mulher, 22 anos de pura inquietação. E eu ainda estou aqui tentando entender onde faço parte disto tudo. Onde é que faço parte dela. Se é que faço.

Coisas boas permaneceram.

Amigos, minha mãe, a vontade de estrada. Também permanece a certeza de que só o incerto me explica. Continuo não dando a mínima para alguns velhos conceitos. Continuo me permitindo amar o outro, tocar o outro, viver o outro.

Continuo gostando de gente. Continuo cuidando da minha vida. Só da minha. Já é o bastante. Continuo não dando satisfação do que faço para quem absolutamente não tem nada a ver com isto. Continuo gostando de olhar as pessoas nos olhos e para tanto é necessária boa dose de integridade. Com o tempo aprendi que fidelidade e lealdade são escolhas. Não nos é natural. Nossa natureza insana é animal, negar ela é escolha consciente em momentos decisivos.

Acredito profundamente em velhas verdades que aprendi e rejeito outras que jamais aceitarei por convenção. De todas as verdades que carrego a que me cativa mais é que diz que toda convicção é uma prisão. Me permito hoje não ter nenhuma convicção, ainda que eu morresse por algumas.

O fato é que os anos, todos eles, nos trazem muito mais quer rugas e cabelos grisalhos. E eu os tenho aos montes. Os anos nos trazem esta coisa pulsante que somos nós, dentro deste corpo que segue indo embora.

Eu sigo e juro, tento não parar.

A vida, esta não para mesmo, e tenho certeza que ela tenta não me devorar.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Meu novembro Azul

Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br

Novembro é mês de meu aniversário.

Pois é. Meu velho pai resolveu morrer em novembro.

Dos muitos desaforos que já me fez na vida, este certamente foi um dos maiores.

Meu novembro sempre tão azul este ano se vestiu de luto.

Eu me vesti de luto.

Me vesti de luto de um jeito que jamais pensei.

E o luto não é coisa ruim. É rever uma vida inteira, uma história inteira, perceber nuances que só a ausência absoluta nos dá.

A morte é a mais sábia das professoras, a melhor das mestras, a mais silenciosas das lições.

Estou cá quietinha, ouvindo o que ela tem a dizer.

Meu pai que em vida muito me faltou (muitas vezes), também muito me ensinou. E agora é a única coisa que realmente importa.

Este novembro cinza roubou de mim todas as borboletas azuis que meu pai já trouxe, mas não tirou de mim a certeza de que esta data é minha e ninguém poderá me tirar isto.

Tenho particular predileção por aniversários, dentre todas as outras comemorações.

Não gosto das outras datas. Não gosto da obrigatoriedade, do estar junto como imposição, do festejo como única opção. Os almoços, jantares e brindes sempre deixa uma falta de gosto quando não cumpridos. Estas datas coletivas (ano-novo, natal, dia das mães, dia dos pais) tem uma imposição que me azeda, enquanto que a data de nascimento de uma pessoa é a data comemorativa realmente impactante da vida dela. E só dela.

Realmente é o ano-novo particular, onde se pode fazer, ou não, o que quiser

Pratico isto com excelência. E me esquivo ferozmente de quem tenta fazer do meu aniversário uma data comemorativa empacotada.

O dia é meu. Só meu. Dele faço e desfaço como quero. Aliás geralmente passo o mês inteiro de novembro desta forma. Meu aniversário é justamente no último dia do mês. Que delícia! São 30 dias repensando minha existência, observando as mudanças físicas e psíquicas ao logo dos anos.

Quando criança e até minha filha nascer esta data gerou certa angustia. Naquela época minha felicidade dependia dos outros. Se “ele” ia lembrar, aparecer, me beijar. Se, se, se.

Depois que me tornei mãe a data de aniversário mais importante do meu universo passou a ser a da minha filha. Meu mundo passou a girar em torno dela, em todos os sentidos e meu aniversário chegou a passar despercebido.

Depois de quase 20 anos escrevendo algo a respeito de minhas expectativas para aquele momento eu simplesmente passei a ignorar meu aniversário. Até que que minha filha cresceu e passou a lembrar da minha própria importância. Lembro o primeiro cartãozinho me parabenizando que ela deu. Pluft! De repente eu percebi que ainda era. Ainda estava aqui e minha história, na pratica, é só minha. Ninguém, nem os nossos filhos, podem tirar de nós a individualidade. Ela passou a tratar meu aniversário como se fosse algo realmente importante. E devolveu para mim o meu próprio olhar.

Durante todos estes anos se existiu uma pessoa que nunca esqueceu meu aniversário esta pessoa foi meu pai. Mesmo durante todos os anos que ficamos sem nos falar, ele sempre enviou ao menos um cartão nesta data. E cada cartão lindo! Diversas vezes mandou flores no meu trabalho, ou apareceu com um único botão de rosa na hora de saída do expediente. Com todas nossas infinitas diferenças devo dizer que meu pai me ensinou perfeitamente como eu deveria ser tratada. Aprendi a não abrir mão disto.

E este novembro que começou com uma ruptura sem volta terminará com meu aniversário. 43 anos para serem repensados e talvez mais da metade de minha vida já vivida.

Bendito sejam todos os novembros azuis de minha vida e que mesmo este, assim tão predominantemente cinza, possa ser de agradecimento ao privilégio da vida, ainda que com a inegável e gritante presença da morte...afinal, a morte nada mais é que o outro lado de uma mesma moeda, a moeda da existência.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

Te nego

Tantos anos se passaram e você ainda está aqui.
Durante estes anos todos escrevi retalhos de sentimentos que não eram meus, pedaços de papéis perdidos, arquivos deletados por engano.
Textos inteiros escritos, sem você, até que aos poucos fui parando de escrever.
Simplesmente aconteceu.
Parei de falar do amor alheio, como se fosse meu.
Parei de falar de mim, como se fosse outro.
Deixei de escrever como quem deixa um vício.
Primeiro aos poucos, depois determinadamente.
Deixei de escrever como quem morre e morta deixei de sentir.
Neste tempo imenso que me separou de ti, todas as vezes que eu escrevi foi para negar tua existência.
Durante todos estes anos, cada texto meu foi para te esconder de mim.
Contei histórias que não eram minhas, amei amores que não eram meus, vesti vestidos emprestados, me escondi nas paixões alheias, me perdi no beijo jamais dado, me escondi de ti escrevendo o amor do outro.
Neguei que tua existência contamina a minha, neguei que o teu toque me aprisiona, escondi que o teu beijo me detém.
Durante cada minuto de todo este tempo a minha escrita sempre foi tua, dissimuladamente tua.
Eu contei amores de minhas amigas, copiei os versos dos amigos, contei o amor alheio, para te negar, te esconder, para nunca te cantar. Eu rasguei cada uma das poesias que escrevi para ti.
Durante todos estes anos eu neguei você.
Neguei que minha história se perdeu na sua, neguei que meu corpo foi teu, neguei que deixei você partir.
Durante todos estes anos escondi você, escondi este amor dilacerante.
Todas as páginas que eu já escrevi omitiam você, mas você estava lá. A omissão gritava o teu nome.
Os meus versos te escondem, minhas linhas te denunciam, os amores alheios que conto como se fossem meus, gritam o amor que é teu e eu nunca dei.
Tanto tempo já passou e você ainda está aqui, em cada uma das poesias que eu nunca escrevi.
Você me olha através do teclado e implora por meu amor. Nega que partiu, nega que mentiu, nega que esqueceu.
E eu, ferida tantas vezes, por seu adeus, renego sua presença, escondo que sinto dor, me entrego a tua inexistência.

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - dia 08/11/2018 - Dia a cremação de meu pai, Silvio de Carvalho Jorge, que faleceu em 07/11/2018)

Gente como eu


Eu acredito piamente em Deus, não consigo mais acreditar nos homens...
Zé Geraldo


A essência da minha escrita é o ser humano, a vida e a liberdade

Eu ainda acredito em gente. Gosto de gente. Gente de todos os tipos, gente para todos os gostos. Até os do contra, eu gosto.

Gosto de gente que ri; me identifico com quem segura o choro, mas se chorar, gosto também. Gosto de gente que geme na hora da luta e sabe gemer na hora do amor. É necessária prática para gemer de amor.

Amo gente que quer sorrir, mas não tem dente. Ri assim mesmo e eu rio junto, de aparelho. (Gosto de ver que o vazio de dente não lhe fez vazio de vida).

Gosto de gente que abraça e gosto de gente que foge do abraço, meio com medo de que você chegue muito perto e perceba que ela não tem perfume. Nem viço.

Gosto de ouvir as diversas gentes, gosto que tenham voz aqueles que dizem o que não acredito. Eles dão sentido a tudo que creio.

Gosto de quem fala baixo, acho charmoso. Invejo. Gosto de quem fala alto, me identifico.

Gosto de gente como quem brinca, como quem cria, como quem aprende. Observar me ensina, me molda, me aperfeiçoa e, às vezes, me mete medo.

Em algumas gentes que olho, cá de fora, vejo uma mácula que apodrece minha alma e envergonha minha natureza. Ai eu choro. Choro baixinho, acreditando que talvez exista esperança para aquele tipo de gente.

Admiro o bruto, o egoísta, o ignorante. Admiro sua capacidade de se assumir como tal. O respeito e observo.

Mas existe um tipo de gente do qual tenho asco: o hipócrita. E dentro da categoria de hipócritas a que mais me causa nojo é o que usa de hipocrisia através da religião. Toda minha vida se baseia na tese da grandeza da criação. Todas as minhas crenças se baseiam na irmandade de nossa matéria, na infinitude de nossa alma e na busca pela unidade.

Tenho asco daqueles que usam do sagrado, do divino, para justificar suas mazelas, suas escolhas, suas falas torpes. Usam da religião para propagar suas próprias pretensas e mentirosas santidades. Muitos jamais tiveram em mãos, como leitores, o livro que intitulam sagrado. Não gastam seu tempo para ler. Como marionetes em um balé macabro, repetem frases isoladas, se apoderam de um direito que não lhes pertence; tiram vidas com o fel de suas salivas. Tudo em nome da fé.

Hipócritas. Desde o princípio dos tempos vocês existem. Sob a pretensa desculpa de serem defensores do Criador (como se acaso um Criador fosse precisar de vocês para O defender) destilam seus próprios orgulhos enquanto escondem na calada da noite a orgia que alimenta sua alma podre.

Deste tipo de gente eu tomo distância segura, mas não muita, mantenho certo desejo insano de vê-los repetindo suas mentiras. Pois tão certo como vive minha alma o dia do acerto há de chegar, para todos nós. E hoje este é meu único alento. A certeza de que ninguém foge do próprio espelho.
Bora, pois amar ainda é minha sina. Quero continuar amando, todas as gentes, como gente que sou.

(Texto postado originalmente em Aspirinasurubu.com.br)

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