terça-feira, 13 de novembro de 2018

Te nego

Tantos anos se passaram e você ainda está aqui.
Durante estes anos todos escrevi retalhos de sentimentos que não eram meus, pedaços de papéis perdidos, arquivos deletados por engano.
Textos inteiros escritos, sem você, até que aos poucos fui parando de escrever.
Simplesmente aconteceu.
Parei de falar do amor alheio, como se fosse meu.
Parei de falar de mim, como se fosse outro.
Deixei de escrever como quem deixa um vício.
Primeiro aos poucos, depois determinadamente.
Deixei de escrever como quem morre e morta deixei de sentir.
Neste tempo imenso que me separou de ti, todas as vezes que eu escrevi foi para negar tua existência.
Durante todos estes anos, cada texto meu foi para te esconder de mim.
Contei histórias que não eram minhas, amei amores que não eram meus, vesti vestidos emprestados, me escondi nas paixões alheias, me perdi no beijo jamais dado, me escondi de ti escrevendo o amor do outro.
Neguei que tua existência contamina a minha, neguei que o teu toque me aprisiona, escondi que o teu beijo me detém.
Durante cada minuto de todo este tempo a minha escrita sempre foi tua, dissimuladamente tua.
Eu contei amores de minhas amigas, copiei os versos dos amigos, contei o amor alheio, para te negar, te esconder, para nunca te cantar. Eu rasguei cada uma das poesias que escrevi para ti.
Durante todos estes anos eu neguei você.
Neguei que minha história se perdeu na sua, neguei que meu corpo foi teu, neguei que deixei você partir.
Durante todos estes anos escondi você, escondi este amor dilacerante.
Todas as páginas que eu já escrevi omitiam você, mas você estava lá. A omissão gritava o teu nome.
Os meus versos te escondem, minhas linhas te denunciam, os amores alheios que conto como se fossem meus, gritam o amor que é teu e eu nunca dei.
Tanto tempo já passou e você ainda está aqui, em cada uma das poesias que eu nunca escrevi.
Você me olha através do teclado e implora por meu amor. Nega que partiu, nega que mentiu, nega que esqueceu.
E eu, ferida tantas vezes, por seu adeus, renego sua presença, escondo que sinto dor, me entrego a tua inexistência.

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - dia 08/11/2018 - Dia a cremação de meu pai, Silvio de Carvalho Jorge, que faleceu em 07/11/2018)

Nenhum comentário:

Postagens populares