domingo, 26 de agosto de 2018

Ainda Estou Aqui

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 23/08/18


- Boa noite, filha.

Começo assim aquela conversa via whatsapp.

- Sabe, eu não sei o que dizer...

E não sabia mesmo. Desde o começo, a sensação de oco no meio do estômago.
Parece que me deram um soco.
Continuo escrevendo e reinscrevendo a conversa e enviando quando fica minimamente inteligível.

- Tenho um medo horrível de não encontrar as palavras certas. É primeira vez na vida que não encontro palavras. Eu não sei o que dizer.

(Repito isto diversas vezes e de novo é verdade).
Continuo a conversa, ela não visualizou ainda:

- Só sei que me pergunto onde é que eu estava quando tudo isto acontecia em sua vida.
Como eu pude não perceber???
Como eu pude não perceber?

(Repito isto todas as vezes que me olho no espelho, numa acusação dolorosa)

- Passarei muito tempo me perguntando isto.
Me perguntando como você deve ter sofrido com meus comentários. Me perguntando como te fiz sofrer sem saber. Sem sequer conceber algo assim. Durante muito tempo, irei me perguntar. Mil vezes. Mesmo assim, outra parte de mim não consegue acreditar. Você teve tantos namorados. Por favor me ajude!

E agora de novo é verdade.
Preciso que ela me ajude.
Eu não sei mais o que dizer.
Preciso que ela me ajude a ser melhor do que isto que estou sendo.
Como seria fácil se eu apenas fizesse de conta que estava tudo bem.
Seria o certo. O politicamente correto. O socialmente correto.
Desculpem se não disfarço minha ignorância.
Sou apenas a mãe dela e estou com medo.
Continuo a enviar mensagens pedindo aos céus que ela leia logo:

- Sabe, nunca senti tanta dor. Meu corpo todo dói.
Dói. Eu não posso aceitar, filha, que você omitiu isto de mim a vida toda.
Dói. Eu não sou boa o suficiente para ter as palavras certas.
Não encontro a frase certa para dizer e me sinto um lixo de mãe por isto.
Dói. Eu amo você. Amo.
Eu simplesmente não sei como lidar com isto.
Preciso aprender a te conhecer.
Me ajude filha, por favor.
Não sei mais ser sua mãe...

(Agora eu já estou chorando. Um choro cheio de soluços)
Ela visualizou.
Está digitando.

“Mãe, quem sabe se a senhora parar de se culpar ajude.
Quanto a não saber ser minha mãe pesquise no yotube. Lá tem de tudo. Aprendi a fazer caipirinha lá!”

Corro para o yotube e digito: homossexualidade; bissexualidade.

- Filha, apareceu de tudo lá, mas nada que me ensine ser sua mãe agora.

Ela responde:

“Mãe, eu estava brincando.
Não precisa de manual. Ainda sou eu aqui”.

Sim. Ainda é ela lá.
Mas já não sou eu aqui.
Sorrio.
Percebo de novo que ela mais ensina a mim do que eu a ela.

A Luva

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 09/08/18



A mão, sempre enluvada.
Tecido fino protegendo a pele igualmente fina.
Mas estava calor e ela tirou a luva.
Bastou um segundo. Antes que ela percebesse, ele pegou sua mão.
Parte preciosa do corpo, muitas vezes a única parte que ela deixava exposta.
E ele a tocou.
Não levemente, com as pontas do dedo.
Não.
Ele pegou em sua mão e ela não esperava.
Desde o começo, ela não esperava nada.
Ele fez troça com ela dizendo que não sabia beijar.
O beijo dele se tornou então o inferno dela.
Sonhava com este beijo, desejava o beijo.
Ela sabia que se ele a beijasse estaria perdida.
Se perderia e se encontraria, nele.

E então naquele dia, justamente ali, ele pegou a mão dela.
E no instante que ela puxou a mão, soube que se perdeu de si.
Era para esquecer.
Toda lembrança boa um dia passa.
Mas aquela não tinha fim.
E na mão que ela tirou da dele ficou a certeza de estar perdida.
Perdida no cheiro das manhãs, no afeto doce dos cuidados.
O inferno desta perdição, acuado em cada gesto inesperado dele.

E na mão dela, que ela tirou da dele, ficou a surpresa, o susto e a espera.
Espera de mais dele nela.
Espera de noites inteiras, depois de manhas aquecidas.
Espera nos lençóis desbotados, das equinas perdidas.
Espera de canções repetidas, em noites mal dormidas.
Espera dos olhos dele perdidos nos dela, numa espera sem fim.

E na mão que ele tocou, ficou o cheiro e o gosto dele.
E agora, ela beija esta mão, toca seu corpo com ela e espera por ele novamente.
A mão que agora tem fogo, arde de amor.
E ela nunca mais usou luvas.
Nunca mais.

Postagens populares