sábado, 1 de agosto de 2020

A maça, o lobo e Eu.

Eu, como muitos de vocês, cresci dentro de um contexto pseudocrístão onde o fruto do pecado, a dita maçã, nos é ensinado como sendo o sexo. Sexo é pecado.Ponto. Ah, tá, dentro de um casamento sob moldes igualmente pseudocrístão ele é divino. Fora disto, é pecado. O exercício da sexualidade é pecado também. Decidir o que fazer com seu corpo, decidir assumir o que te dá prazer é pecado dos mais cabeludos com passagem garantida para o inferno. Sexo, afinal, é para procriar, feito fora deste contexto, sem esta finalidade, pecado de novo e mais uma vez. O prazer é tratado como pecado. Dentro disto, o próprio corpo é o centro de todo pecado. Expor o corpo? Pecado. Roçar o corpo? Pecado. Atrair com o corpo? Pecado. E isto segue, num caminho sem volta onde aprendemos a atacar tudo que é feito com o corpo, mesmo quando ele não é nosso. Nesta necessidade de fugir do pecado até cometemos a injuria de chamar prazer de amor, só para purificar o ato libidinoso. Ah, mas era amor, então podia. Mentimos para nós mesmos. Era sexo. Só sexo. Era prazer e era muito bom. Mas não podia. E assim passamos a vida negando nosso corpo e nos lambuzando com outras formas de prazer, comemos em excesso, bebemos em excesso, dormimos em excesso e sobretudo cuidamos do corpo alheio, em excesso. Nos ofendemos com a liberdade alheia, com o prazer alheio. É pecado. Temos de alertar o mundo, os pecadores vão tomar conta de tudo, vamos, militemos, preguemos, somos puros, castos, santos, nossos corpos não nos enganam, eles são poço de prazer e contaminação. Pecado. E assim passamos a vida negando que nosso corpo é nosso santuário e também fonte inesgotável de delicias e prazeres. E que só devemos conta de um único corpo nesta terra: o nosso próprio. Respeitar os limites deste santuário é missão delegada apenas ao seu morador. O meu corpo é minha casa terrena, não me envergonho dele, não tenho medo dele e não vejo culpas nele. Mas sobretudo eu o conheço bem o suficiente para não me enganar com a mentira do pecado e assim esconder excessos. Aprendi que o que me difere de um lobo são as escolhas que faço para obter prazer. O prazer a qualquer custo me levaria de volta para a floresta, onde eu uivaria para a lua. Nem é uma opção tão ruim assim, convenhamos, mas eu escolhi ficar de pé, e ser a mulher que sou, sem disfarces, nua diante da Lua. O pecado, no fim, nem era uma maça, sabemos. Não era sexo também. O pecado era o ego. Ego que nos afasta da presença do Amor Maior. Este sim, amor de verdade. Ainda assim, milhares de anos depois de contada uma das mais conhecidas histórias do livro sagrado dos Cristãos, ainda assim, muitos preferem continuar acreditando que sexo é pecado e falta de Amor Não. Lamento. E danço, nua, sob a Lua, em pé, não como um lobo que devora, mas como a mulher que decidi ser, amando.

terça-feira, 31 de março de 2020

Eu, todos os dias...em doses homeopáticas

Faz tanto tempo que não venho aqui.
Canso de ouvir as pessoas dizerem que devo voltar a escrever.
Mas relendo alguns textos, duvido muito que valha a pena para alguém.
Deus! Quanto eu mudei desde aquela primeira postagem, em agosto de 2008.
Doze anos se passaram.
Deixei de ser faxineira, me formei, assumi um cargo publico em minha área de formação, fiz de uma casa miserável e destruída um lar para minha mãe e filha, de maneira lenta e uniforme construí uma relação da qual me orgulho com meu parceiro, e sobretudo, me orgulho do que vejo quando olho o espelho. E não falo de aparência. Cada pedaço da mulher que eu vejo é de fato a mulher que sou. E gosto.

Releio alguns textos envergonhada com minha ingenuidade, outros envergonhada com minha limitação literária.

Identifico erros grosseiros de gramática, pontuação, concordância...erros primários que denunciam o quanto foram precários meus primeiros anos na escola.
Desconfio que hoje eu teria algum tipo de nome que explicasse minha absoluta incapacidade de ver a diferença de "p" com "b", "m" com "n", e outras noções que pareciam tão simples para todos e que a mim pouco importavam.
Ir a escola já era um grande desafio.
Lembro que acordava, sem querer. Banho no balde. Banheiro imundo, como era toda a casa.
O grande desafio era escolher roupa. Não, não a mais bonita, mas sim qualquer uma, limpa, que cobrisse meu corpo. Sim, cabelo eu nunca tinha, era sempre cortado na raiz, estratégia para evitar os piolhos.
Mas eu era vaidosa. Cabelo curto, nariz em pé. Que roupa por?
Eu desejava estar junto com os outros...mesmo quando só os olhava de longe. Sim, eu fui uma criança extremamente quieta. Hoje me vingo. Sim, eu falo muito, mas se engana quem pensa que sabe tudo que penso.
Se engana quem vê meu muito falar e pensa que não há filtro. Existe um filtro, e eu me escondo atrás dele.
Mas, quando criança eu ainda não sabia me esconder. Era calada e quase sempre sozinha. Mas, criança que era, só queria agradar. De cabelo curto, procurava desesperada algum pano para por no corpo. Por muito tempo usei camisas do meu irmão, amarradas com linha, na cintura, e desta forma fazer parecer um vestido.
As vezes simplesmente não havia roupa decente para sair de casa, e muitas eram estas vezes.
Quem me conhece não aguenta mais eu contando a história de que fui fazer uma prova descalça. Ganhei uma melissa por isto. Razão de minha paixão pela marca depois de adulta.
Pois é. Escola para mim era resistência. Com fome, muitas e muitas vezes com frio, ir ate lá já era muito. Eu simplesmente não conseguia enxergar nada na minha frente. Anos depois descobri minha miopia altíssima, razão pela qual não conseguia mais acompanhar as aulas.
Assim terminei ensino fundamental, com muitas outras histórias terminei o ensino médio. Grávida. Devo dizer que minha filha nasceu na noite do baile e formatura.
Com isto tudo quero te dizer que esta é a base da minha educação. Precária, como precária foi minha vida até os 30 anos. Mas eu resisti.
E cumpri todas as promessas que fiz a mim mesma ainda na infância.
Foi assim que aprendi a escrever, ler, somar. E disto tudo a unica coisa que sei fazer extremamente bem é ler.
Dito isto esclareço que não tenho pretensão alguma com meus textos, além de ser o que sou, sem limites.
Aqui é meu espaço, você meu convidado.
Quero fazer um pacto com este lugar: Não venha aqui a procura de algum padrão para minha escrita. Não venha aqui caso busque ler algo realmente bom. Temos blogs maravilhosos por ai. Vá procurar literatura boa em qualquer outro lugar. Em suma: não encha meu saco.
Eu escrevo unicamente por precisar.
Escrever é e sempre será um caminho, que eu posso perfeitamente trilhar sozinha.
Venha, se quiser e encontrará, sem dúvida, eu, todos os dias...


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Meu Ciclo

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - Ultimo texto do projeto de blogagem coletiva realizado em 2018)

É fim de ano e para mim o fim de uma era inteira.
Todos os ciclos do meu universo começam e terminam em mim. E só dizem respeito a mim e aos que caminham ao meu lado. Dentro do meu útero sinto as dores necessárias a renovação, a pessoa que sou se orgulha ao olhar o que eu poderia ter sido, as vezes ainda se recente dos sonhos jamais alcançados.
Constato que nenhum desses sonhos era de fato meu, mas eram sonhos coletivos, plantados no peito de toda jovem mulher desde o princípio dos tempos.
Um amor, o par de alianças, joelhos no chão, o pedido. Uma casa, um cachorro, os moveis novos nas paredes revestidas com carinho. Depois viriam os filhos, um, dois, quem sabe três. E a casa branca, agora com paredes sujas de mãozinhas, teria sempre brinquedos espalhados pelo chão. Viria a vida, com regras, ordem, cadernos de estudo sobre a mesa da sala. Os filhos cresceriam, se formariam, amariam e me dariam netos. Haveria ordem, haveria regra e a regra seria continuar este ciclo que os leva a ser o que todos são. Às vezes eu pegaria um álbum de fotos onde eu me veria com o vestido de noiva que jamais usei, e lá eu estaria tão bela e tão feliz... eu choraria escondido de saudades da menina que fui.
Mas a vida não se fez assim, minha história começou do fim e eu me vi ninando o bebê que pari sozinha. As paredes sempre tão sujas, a casa cheia de nódoas, os cantos todos cheio de uma tristeza que não ia embora.
Quando dei por mim me vi pintando aquele quartinho para receber a bebe. Juntei cada centavo de todas minhas economias, comprei tecidos coloridos para revestir potes de sorvete, adornei com cores a velha janela, enchi de fitas e bordados, eu ia ter uma menina. Uma princesa, a princesa que eu nunca fui. Tive medo, eu ia parir uma igual. Alguém que também traria no ventre o poder da terra.
Mas eu consegui. Pari e fui mãe. A melhor que pude. Sem sonhos. Sem vestidos de noiva. Sem uma casa ou o abrigo de um par. Costumo dizer que fui mãe sem jamais ter sido filha. Fiz o que deu. E deu.
Dos três filhos que eu teria, me veio uma. E ela me bastou como jamais pensei. Do grande amor que eu teria, me perdi, e isto jamais passou.
Da história que eu sonhei um dia, nada ficou. Nada. Desconstruí as fadas, criei minhas bruxas, lambi minhas feridas, limpei com minhas lágrimas toda dor que senti sozinha. Sozinha. E assim aprendi que na hora do acerto seremos somente Deus e eu.
Da plateia, dos que comentam, dos que apontam, dos que pensam saber mais do que sabem, não haverá ninguém. Ninguém responderá por mim e explicará minhas razões.
O espelho inerte gritará todas as verdades e eu vendo quem sou cantarei a certeza de ser quem devia.
Terei sempre a certeza de ter dito sim todas as vezes que pude. De ter dito não, mesmo quando quis muito, mas o não era o único caminho digno. De não ter fracassado na hora da escolha e jamais ter plantado ervas danosas pelo caminho.
Este ano um ciclo se fechou. Enterrei quem mais amei. Bani de minha vida a última culpa que eu carregava. E percebi que minha história ainda não acabou, talvez, esteja só começando.
Não tenho a velha foto vestida de noiva para olhar, mas carrego dentro de mim todos os sonhos que posso ter. Se o passado não foi um conto de fadas o presente é a melhor história que eu poderia escrever e eu me dei de presente ser feliz. Posso, devo e mereço.
A história não acaba aqui. Ela se fecha e recomeça e eu sempre irei seguir algo além dos meus instintos. Sempre direi não, quando o não for a única resposta digna. E no fim isto tudo só interessa a mim.
Carrego a certeza de que quando mais este ciclo se fechar, só uma pessoa estará lá me esperando: a pessoa que eu sonhei ser. O ciclo é meu e fim.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Minha escrita

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Meus olhos passeiam pelos livros sobre a estante e vejo muitos que ainda não li. Como objetos de decoração enfeitam minha sala e me lembram sobre quem sou. Leio meus velhos textos, alguns perdidos em minhas pastas de arquivos outros publicados em meu blog, esquecidos com apenas cinco visualizações. Nunca me importou que não leriam os meus textos. Me importa escrever, enquanto escrevo eu vivo, eu sou.

Dia destes, nas redes sociais, havia uma postagem perguntando quem passaria três meses em uma cabana no meio do nada, sem energia elétrica, sem internet, sem celular. Percebi que ficaria, tranquilamente, em um lugar assim. Nesta hora senti a dor de pensar em não ter caneta e papel. Não sou capaz de viver sem escrever, escrever sempre foi minha primeira necessidade.

Quando eu era criança, fiz um pequeno caderno de poesias. Tentava rimar a vida com letras infantis. Em uma de minhas rixas com minha irmã ela rasgou o caderno. Primeira vez que entendi que minha escrita seria para sempre minha vulnerabilidade. Eliminar o que escrevo seria para sempre uma maneira direta de me atacar.

Anos mais tarde, pouco antes de consumar meu divórcio, meu ex-marido juntou todos os meus cadernos e os jogou no lixo do banheiro, fez um monte no quintal e ateou fogo. Primeira vez que entendi que minha escrita pode ofender. Ofende não explicar, não dar nomes, ofende quando canto o conto e não explico se é meu, ofende sentir o que o outro sente, fazer verso com a poesia alheia, compor uma crônica e pode falar de quem eu quiser.

Ofende, pois meu sentir é antes de tudo efêmero e pode ser, inclusive, seu. Minha escrita não tem dono, fala de mim e fala do outro. Fala do amor que minha amiga conta, fala da saudade que temos e que arrastamos sem nunca, nunca, confessarmos.

Escrevo como quem costura, ponto a ponto, sem o menor compromisso com o manequim. Eu rasgo minha escrita e a reconstruo com rendas e babados, com cores e adereços, pinto e bordo este tecido fino, tão branco, que é a folha na tela do computador. Eu escrevo cantando pelas ruas, trechos perdidos que gravo em áudios, na esperança que cada frase faça um dia sentido. Eu escrevo como quem confessa o amor que tenho e nego, escrevo como quem mente e vive, como quem chora e morre. Minha escrita será minha única herança e meu maior desassossego.

Escrevo para dizer que vivo e viva permaneço em cada letra.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O Tempo e eu

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Nestes anos todos quanto de mim ficou pelo caminho e principalmente quanto do caminho ficou em mim.

Mudei de emprego. Trouxe comigo amigos queridos e fiz outros pelo caminho.

Profissionalmente devo dizer que aprendi, reaprendi e aprendi de novo, justamente aí descobri que deveria aprender tudo novamente. E assim, sigo ganhando meu pão como quem brinca, pois quem trabalha com o que ama recebe salário dobrado.

Também casei de novo. Pois é cara, eu fiz isto. Nos últimos anos casei pela segunda vez.

E faria de novo. E de novo. Quando já se perdeu tanto no caminho você perde, também, o receio de perder mais. Ser feliz não é um risco. Ser feliz é uma escolha. E eu escolho ser e fazer feliz, nada menos.

Minha filha cresceu. O tempo passou tão depressa, de fato, tanto tempo fez dela mulher, 22 anos de pura inquietação. E eu ainda estou aqui tentando entender onde faço parte disto tudo. Onde é que faço parte dela. Se é que faço.

Coisas boas permaneceram.

Amigos, minha mãe, a vontade de estrada. Também permanece a certeza de que só o incerto me explica. Continuo não dando a mínima para alguns velhos conceitos. Continuo me permitindo amar o outro, tocar o outro, viver o outro.

Continuo gostando de gente. Continuo cuidando da minha vida. Só da minha. Já é o bastante. Continuo não dando satisfação do que faço para quem absolutamente não tem nada a ver com isto. Continuo gostando de olhar as pessoas nos olhos e para tanto é necessária boa dose de integridade. Com o tempo aprendi que fidelidade e lealdade são escolhas. Não nos é natural. Nossa natureza insana é animal, negar ela é escolha consciente em momentos decisivos.

Acredito profundamente em velhas verdades que aprendi e rejeito outras que jamais aceitarei por convenção. De todas as verdades que carrego a que me cativa mais é que diz que toda convicção é uma prisão. Me permito hoje não ter nenhuma convicção, ainda que eu morresse por algumas.

O fato é que os anos, todos eles, nos trazem muito mais quer rugas e cabelos grisalhos. E eu os tenho aos montes. Os anos nos trazem esta coisa pulsante que somos nós, dentro deste corpo que segue indo embora.

Eu sigo e juro, tento não parar.

A vida, esta não para mesmo, e tenho certeza que ela tenta não me devorar.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Meu novembro Azul

Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br

Novembro é mês de meu aniversário.

Pois é. Meu velho pai resolveu morrer em novembro.

Dos muitos desaforos que já me fez na vida, este certamente foi um dos maiores.

Meu novembro sempre tão azul este ano se vestiu de luto.

Eu me vesti de luto.

Me vesti de luto de um jeito que jamais pensei.

E o luto não é coisa ruim. É rever uma vida inteira, uma história inteira, perceber nuances que só a ausência absoluta nos dá.

A morte é a mais sábia das professoras, a melhor das mestras, a mais silenciosas das lições.

Estou cá quietinha, ouvindo o que ela tem a dizer.

Meu pai que em vida muito me faltou (muitas vezes), também muito me ensinou. E agora é a única coisa que realmente importa.

Este novembro cinza roubou de mim todas as borboletas azuis que meu pai já trouxe, mas não tirou de mim a certeza de que esta data é minha e ninguém poderá me tirar isto.

Tenho particular predileção por aniversários, dentre todas as outras comemorações.

Não gosto das outras datas. Não gosto da obrigatoriedade, do estar junto como imposição, do festejo como única opção. Os almoços, jantares e brindes sempre deixa uma falta de gosto quando não cumpridos. Estas datas coletivas (ano-novo, natal, dia das mães, dia dos pais) tem uma imposição que me azeda, enquanto que a data de nascimento de uma pessoa é a data comemorativa realmente impactante da vida dela. E só dela.

Realmente é o ano-novo particular, onde se pode fazer, ou não, o que quiser

Pratico isto com excelência. E me esquivo ferozmente de quem tenta fazer do meu aniversário uma data comemorativa empacotada.

O dia é meu. Só meu. Dele faço e desfaço como quero. Aliás geralmente passo o mês inteiro de novembro desta forma. Meu aniversário é justamente no último dia do mês. Que delícia! São 30 dias repensando minha existência, observando as mudanças físicas e psíquicas ao logo dos anos.

Quando criança e até minha filha nascer esta data gerou certa angustia. Naquela época minha felicidade dependia dos outros. Se “ele” ia lembrar, aparecer, me beijar. Se, se, se.

Depois que me tornei mãe a data de aniversário mais importante do meu universo passou a ser a da minha filha. Meu mundo passou a girar em torno dela, em todos os sentidos e meu aniversário chegou a passar despercebido.

Depois de quase 20 anos escrevendo algo a respeito de minhas expectativas para aquele momento eu simplesmente passei a ignorar meu aniversário. Até que que minha filha cresceu e passou a lembrar da minha própria importância. Lembro o primeiro cartãozinho me parabenizando que ela deu. Pluft! De repente eu percebi que ainda era. Ainda estava aqui e minha história, na pratica, é só minha. Ninguém, nem os nossos filhos, podem tirar de nós a individualidade. Ela passou a tratar meu aniversário como se fosse algo realmente importante. E devolveu para mim o meu próprio olhar.

Durante todos estes anos se existiu uma pessoa que nunca esqueceu meu aniversário esta pessoa foi meu pai. Mesmo durante todos os anos que ficamos sem nos falar, ele sempre enviou ao menos um cartão nesta data. E cada cartão lindo! Diversas vezes mandou flores no meu trabalho, ou apareceu com um único botão de rosa na hora de saída do expediente. Com todas nossas infinitas diferenças devo dizer que meu pai me ensinou perfeitamente como eu deveria ser tratada. Aprendi a não abrir mão disto.

E este novembro que começou com uma ruptura sem volta terminará com meu aniversário. 43 anos para serem repensados e talvez mais da metade de minha vida já vivida.

Bendito sejam todos os novembros azuis de minha vida e que mesmo este, assim tão predominantemente cinza, possa ser de agradecimento ao privilégio da vida, ainda que com a inegável e gritante presença da morte...afinal, a morte nada mais é que o outro lado de uma mesma moeda, a moeda da existência.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

Te nego

Tantos anos se passaram e você ainda está aqui.
Durante estes anos todos escrevi retalhos de sentimentos que não eram meus, pedaços de papéis perdidos, arquivos deletados por engano.
Textos inteiros escritos, sem você, até que aos poucos fui parando de escrever.
Simplesmente aconteceu.
Parei de falar do amor alheio, como se fosse meu.
Parei de falar de mim, como se fosse outro.
Deixei de escrever como quem deixa um vício.
Primeiro aos poucos, depois determinadamente.
Deixei de escrever como quem morre e morta deixei de sentir.
Neste tempo imenso que me separou de ti, todas as vezes que eu escrevi foi para negar tua existência.
Durante todos estes anos, cada texto meu foi para te esconder de mim.
Contei histórias que não eram minhas, amei amores que não eram meus, vesti vestidos emprestados, me escondi nas paixões alheias, me perdi no beijo jamais dado, me escondi de ti escrevendo o amor do outro.
Neguei que tua existência contamina a minha, neguei que o teu toque me aprisiona, escondi que o teu beijo me detém.
Durante cada minuto de todo este tempo a minha escrita sempre foi tua, dissimuladamente tua.
Eu contei amores de minhas amigas, copiei os versos dos amigos, contei o amor alheio, para te negar, te esconder, para nunca te cantar. Eu rasguei cada uma das poesias que escrevi para ti.
Durante todos estes anos eu neguei você.
Neguei que minha história se perdeu na sua, neguei que meu corpo foi teu, neguei que deixei você partir.
Durante todos estes anos escondi você, escondi este amor dilacerante.
Todas as páginas que eu já escrevi omitiam você, mas você estava lá. A omissão gritava o teu nome.
Os meus versos te escondem, minhas linhas te denunciam, os amores alheios que conto como se fossem meus, gritam o amor que é teu e eu nunca dei.
Tanto tempo já passou e você ainda está aqui, em cada uma das poesias que eu nunca escrevi.
Você me olha através do teclado e implora por meu amor. Nega que partiu, nega que mentiu, nega que esqueceu.
E eu, ferida tantas vezes, por seu adeus, renego sua presença, escondo que sinto dor, me entrego a tua inexistência.

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - dia 08/11/2018 - Dia a cremação de meu pai, Silvio de Carvalho Jorge, que faleceu em 07/11/2018)

Gente como eu


Eu acredito piamente em Deus, não consigo mais acreditar nos homens...
Zé Geraldo


A essência da minha escrita é o ser humano, a vida e a liberdade

Eu ainda acredito em gente. Gosto de gente. Gente de todos os tipos, gente para todos os gostos. Até os do contra, eu gosto.

Gosto de gente que ri; me identifico com quem segura o choro, mas se chorar, gosto também. Gosto de gente que geme na hora da luta e sabe gemer na hora do amor. É necessária prática para gemer de amor.

Amo gente que quer sorrir, mas não tem dente. Ri assim mesmo e eu rio junto, de aparelho. (Gosto de ver que o vazio de dente não lhe fez vazio de vida).

Gosto de gente que abraça e gosto de gente que foge do abraço, meio com medo de que você chegue muito perto e perceba que ela não tem perfume. Nem viço.

Gosto de ouvir as diversas gentes, gosto que tenham voz aqueles que dizem o que não acredito. Eles dão sentido a tudo que creio.

Gosto de quem fala baixo, acho charmoso. Invejo. Gosto de quem fala alto, me identifico.

Gosto de gente como quem brinca, como quem cria, como quem aprende. Observar me ensina, me molda, me aperfeiçoa e, às vezes, me mete medo.

Em algumas gentes que olho, cá de fora, vejo uma mácula que apodrece minha alma e envergonha minha natureza. Ai eu choro. Choro baixinho, acreditando que talvez exista esperança para aquele tipo de gente.

Admiro o bruto, o egoísta, o ignorante. Admiro sua capacidade de se assumir como tal. O respeito e observo.

Mas existe um tipo de gente do qual tenho asco: o hipócrita. E dentro da categoria de hipócritas a que mais me causa nojo é o que usa de hipocrisia através da religião. Toda minha vida se baseia na tese da grandeza da criação. Todas as minhas crenças se baseiam na irmandade de nossa matéria, na infinitude de nossa alma e na busca pela unidade.

Tenho asco daqueles que usam do sagrado, do divino, para justificar suas mazelas, suas escolhas, suas falas torpes. Usam da religião para propagar suas próprias pretensas e mentirosas santidades. Muitos jamais tiveram em mãos, como leitores, o livro que intitulam sagrado. Não gastam seu tempo para ler. Como marionetes em um balé macabro, repetem frases isoladas, se apoderam de um direito que não lhes pertence; tiram vidas com o fel de suas salivas. Tudo em nome da fé.

Hipócritas. Desde o princípio dos tempos vocês existem. Sob a pretensa desculpa de serem defensores do Criador (como se acaso um Criador fosse precisar de vocês para O defender) destilam seus próprios orgulhos enquanto escondem na calada da noite a orgia que alimenta sua alma podre.

Deste tipo de gente eu tomo distância segura, mas não muita, mantenho certo desejo insano de vê-los repetindo suas mentiras. Pois tão certo como vive minha alma o dia do acerto há de chegar, para todos nós. E hoje este é meu único alento. A certeza de que ninguém foge do próprio espelho.
Bora, pois amar ainda é minha sina. Quero continuar amando, todas as gentes, como gente que sou.

(Texto postado originalmente em Aspirinasurubu.com.br)

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Fragmentados

Nossos corpos no espelho.

Nossa altura, nossas mãos, nosso tom de pele.

Teus olhos sobem por minhas curvas indo de uma tatuagem a outra.

Elas combinam e eu gosto.

Me aconchega melhor no teu abraço, me enlaça com tua perna e o espelho é uma pintura. O espelho está lá, mas nós já não o vemos.

Nos minutos contados das horas todas que temos, perdemos a noção de espaço, o espelho quebrou. Em cada marca dos nossos rostos, no flagelo de nossos corpos, os anos. Todos os anos que nos separaram. A tua boca desenha a minha, tuas mãos me procuram, me encaixam, nossas pernas se perdem e nos teus olhos me vejo inteira. O espelho quebrou, teus olhos não, e eles refletem os meus.

Gosto quando as gotas do teu suor caem sobre mim, molham, aquecem, sinto teu cheiro nelas. Me ensopa com teu calor, me invade cheio de vontades, me sacia com tua força.

Os cacos de vidros, do espelho quebrado, se espalham pelo quarto, se perdem nos lençóis e nos cortam. Não sentimos nossos corpos e nossa cama tem sangue. As paredes têm sangue, tua boca tem sangue. Tantas promessas perdidas em noites mal dormidas e o sangue nos cala. O sangue que do meu corpo jorra derruba as paredes. Não temos mais teto, o céu é púrpura. O sangue é meu. Os cacos do espelho furam minha carne e o espelho sou eu.

Meu rosto no espelho fragmentado, pedaços de mim, sem você eu não sou.

O céu desaba sobre nós. Em gotas pesadas, lavam nossa cama, tiram o sangue da minha pele branca, arrastam os cacos do espelho para longe de nós. O que somos se esvai com os cacos, com a chuva purpura do céu púrpura. Minha boca já não te encontra e o silêncio nos sufoca. Já não temos o chão. Sem teto, sem paredes, sem ter onde pisar, só nos resta a cama com seus lençóis manchados. O espelho quebrado não reflete nossa pele, sem o espelho não sei quem eu sou.

Recolho em meio aos lençóis os poucos cacos que restam. Me corto, me rasgo, não tenho mais sangue. O espelho quebrado levou consigo todos os meus planos. A cama flutua a ermo no ar e o céu nos redime.

O sangue que jorra do espelho quebrado lava o horizonte. Todos os caminhos têm sangue.

O espelho partido leva para longe de nós o que temos. Já não somos e nem percebemos.

(Texto postado originalmente no blog www.aspirinas.urubu.com)

sábado, 22 de setembro de 2018

O Trem é meu

Nascida e criada em São Paulo, filha de paulistanos, descobri que amava esta cidade quando casei com um mineiro.

De tanto ouvir ele elogiar suas terras, a comida, o sotaque, o queijo, o café, as paisagens, tudo sempre muito melhor que aqui, acabei por agarrar um certo “ranço” desta falação toda e a inquirir o que diabos ele tinha vindo fazer aqui, já que nada prestava.

Ele sempre respondia: “trabalho, trabalho é o que nos traz, todos, para cá. Aqui pode faltar emprego, carteira assinada, mas trabalho não falta. Aqui se vive até do lixo. ”

Pois é. Aqui se trabalha o tempo todo. Mesmo quando não se trabalha.

Os trens estão sempre superlotados, levando e trazendo as gentes de todos os cantos. Em sua maioria, levando e trazendo de seus empregos. Fico pensando como será quando resolverem o problema do desemprego. A CPTM (Companhia paulista de trens metropolitanos) que já vive em colapso irá transbordar, definitivamente.

Mas os trens também dão emprego a muita gente.

No trem tem cancioneiros, pedintes, atores, músicos, e sobretudo vendedores, muitos.

Paulistano não fica desempregado, paulistano vende água no farol. Ou no trem. Aliás no trem vende-se de tudo

Ralador de queijo, descascador de batatas, controle universal para televisão, salgadinhos, balas, biscoitos, carregador de celular e se você souber esperar vende-se até o celular, que pode ter sido roubado de outro passageiro, como você.

Vale lembrar que é proibido o comércio ambulante nos trens. Somos todos cúmplices, comendo a batatinha.

Mineiro chama tudo de trem, mas trem mesmo, com a nossa proporção, Belo Horizonte não tem.

O trem aqui é rotina, é parte fundamental das paisagens.

Sou moradora do extremo lesta da cidade de São Paulo, justamente ao lado de uma das mais movimentadas estações de trem de todo o município.

Quando criança meu pai, que vinha nos ver periodicamente, me levava para passear de trem. Me ensinou tudo. Esperar na plataforma antes da faixa amarela, entrar no vagão antes do sinal, dar lugar para os idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais, segurar-se nos apoios quando estivesse de pé. Mal sabia ele que eu nunca sentaria e que jamais seria necessário segurar-se: a multidão exprimida faria isto por mim.

Nós, os moradores da periferia, chamamos o centro da cidade de “ São Paulo”. Como se fosse outro mundo, outra cidade. E as vezes acho que é. O mundo acaba em Itaquera, do lado do estádio do Corinthians, de lá para cá ficamos esquecidos, povoando uma parada de trem onde levamos mais tempo para entrar na estação do que no percurso pretendido.

Filas intermináveis se formam as seis da manhã, rodeando toda a passarela, saindo até a rua e ganhando tamanho calçada afora.

Mesmo assim, com suas intermináveis filas, o trem é para mim o melhor transporte de minha cidade.

O trem é lúdico, quase que romântico. O trem tem poesia. O trem tem, inegavelmente, calor.

O trem com seu embalo, tem algo que nenhum outro transporte possui. Ele te chacoalha, quase te colocando para ninar, e aos solavancos te acorda, lembrando que ali não é ninho.

O trem, com sua interminável distância entre uma estação e outra, permite que se crie laços.

Houve um tempo em que os grupos se dividiam em vagões: o vagão dos evangélicos, onde se entoavam hinos ao Criador e depois sempre um sermão falando de amor e perdão, onde todos podiam se aconchegar; o vagão do baralho, da cacheta, do buraco, onde era impossível dormir ao som dos brados dos jogadores, o vagão do samba, onde sempre rolava um pagode, uma paquera e por fim o vagão dos maconheiros. Sim. Maconheiros. Era permitido fumar cigarro nos trens de minha meninice e daí para a maconha era um pulo.

Nos últimos anos nada disto é permitido mais. Mas os laços continuam sendo criados e os vendedores continuam encontrando clientes e cúmplices.

O trem não perde seu balanço.

Quando estive na cidade de meu esposo não pude deixar de pensar: ele não tem trem.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 20/09/18)

O Rato


A ratazana do nosso amigo cronista trouxe à minha memória as diversas ratazanas de minha vida.
Não falo daquelas subjetivas, para as quais não damos, nem temos jeito.
Falo do bicho, o rato, o roedor.
Meninice miserável por infinitos motivos que não os sociais, os ratos foram companhia de quase toda minha infância.
Horripilantes, subiam pelas paredes, construíam suas tocas dentro do reboco, tomavam conta de tudo.
Pariam suas crias minúsculas em ninhos construídos por todos os cantos da casa abandonada.
Nós, eu e minha irmã, fugíamos deles como podíamos. As vezes simplesmente não podíamos.
Eles saiam do saco de pão e tínhamos de deitar fora aquele que talvez fosse o único alimento do dia.
Resumo da ópera: os bichinhos infernizaram boa parte dos meus pesadelos por muitos anos.
Adulta, vida tomou outros rumos, pegamos o boi pelo chifre e passamos a ter vida decente. Em uma vida decente não há espaço para roedores, sobretudo os ratos.
Todavia, eles pareciam dispostos a voltar. Ao menos um estava lá. Eu, e toda a família, sim, agora a casa tinha uma família, percebemos.
Tudo começou com a banana.
A fruteira que descansava sobre a mesa aparecia revirada, as frutas com largos buracos, o interior da banana devastado.
Colocamos a fruteira em cima da geladeira. Não adiantou.
Dia seguinte, lá estava a prova de que o bicho é ótimo escalador.
Recheamos o interior da banana com chumbinho, produto clandestino, irregularmente utilizado como raticida, a fim de finalizar o bicho.
Não adiantou. O infame comeu todo o contorno da fruta, as regiões não prejudicadas pelo veneno e largou o resto lá, num gesto de profundo desdém com as tentativas humanas.
Mal sabiam que o avô do rato em questão, morrera desta forma, deixando as novas gerações o aprendizado de rejeitar qualquer poção de chumbinho que acaso lhe fosse oferecida.

Pois bem, sendo assim, restou a brilhante ideia de colocar uma ratoeira.
Sim, ratoeira. Descobrimos que existem ratoeiras de vários tipos. Escolhemos a que parece uma pequena gaiola, que se fecha, tão logo o bicho entra.
Dito e feito, armado o bote, pegamos o sujeito.
Dia seguinte lá estava ele.
Pequeno.
Olhos miúdos, pretos. Pelos cinzentos.
Patinhas minúsculas.
Merda!
E agora? Fazemos o quê? Damos uma paulada nele? Afogamos? Jogamos álcool e acendemos o fogo?
É só um roedor. Merda! Mil vezes merda!
Não dá para matar a pauladas um filhote peludo. O que fazemos agora?
Por um segundo tudo perde o sentido, a higiene, o medo, o nojo.
Caramba, é só um bichinho.
Ok, é feio. É sujo. Mas é só um rato, catzo.

Bóra, lá.
Rato na ratoeira, família inteira dentro do carro.
Destino? A pedreira do bairro.
O filhote de roedor olha a cela aberta, horizonte de pedras, água, resquícios de passagem humana.
Não podia ser verdade. Eles estavam libertando-o.
Saiu, reticente.
Certamente iriam persegui-lo, acuá-lo, espancá-lo com uma vassoura.
No mínimo lhe dariam para alimentar o bicho cativo da casa, o gato.
Mas não. Ganhou o mundo, livre.
Correu pelas pedras sentindo o cheiro de mato, água e restos de alimentos pelos cantos.
Depois de ganhar certa distância olhou para trás, na certeza de que nunca esqueceria aqueles três pares de olhos que o fitavam.
Contaria aos seus netos roedores sobre o dia em que uma família o amou um pouco. Só um pouco.
E eu, a humana do lado de cá, com meu esposo e filha, pude enfim voltar para casa e deixar naquela pedreira, livres, todos os ratos de minha infância.

(Postado no blog aspirinas.urubu.com em 13/09/18)

Dois botões no metrô


Quem a visse agarrada aos dois botões de rosa daria pouca importância diante das circunstancias. São Paulo, horário de pico. Milhões indo, sabe-se lá para onde. Milhões vindo, sabe-se lá de onde. Mas todos resolvem ir e vir, no mesmo horário, e temos a impressão de que todos vão ou voltam do mesmo lugar. Com muita pressa e, às vezes, com muita raiva. Sabe-se lá o motivo.

O fato é que a raiva os faz expor o pior no meio da multidão, na hora de entrar ou sair do transporte coletivo. Talvez seja apenas raiva da vida, de suas incapacidades de serem felizes. Talvez seja raiva do outro: a culpa é sempre do outro. O pai, a mãe o irmão, o amante. Quem tem raiva da vida termina tendo raiva de tudo. Até dos amores.

Enfim… multidão raivosa ou pacífica, como bois conduzidos pelo berrante. Neste horário, sempre multidão. E multidão espremida, antes mesmo de embarcar, esmagados. A plataforma é na estação Brás. Metrô. Transferência gratuita do trem. Uma das muitas experiências extremas de desconforto que o transporte público nos oferece.

Proximidade absurda, beirando a desumanidade.

Corpo com corpo, rosto no rosto, o suor do outro logo será teu também. O cheiro. O toque. As bolsas. O desrespeito que às vezes surge. Quase sempre não. Exercita-se na marra a capacidade de amor ao próximo, você ama muito, ou se torna um psicopata. Paciência a toda prova. Paciência. Isto ela tem de sobra.

Afinal, fora esta paciência heroica que lhe premiou com aquelas rosas.

As rosas. Sim, os dois botões de rosa......que carrega agarrada, junto ao peito. Eu a observo, quase velando por suas rosas. Percebo sua inexperiência urbana e a protejo como um escudo. Afinal, ela tem flores, flores agarradas ao peito. Percebo que sua paciência tem algo de supersticioso. Me aproximo dela emburrada pela multidão que caminha em direção aos trilhos em um balé perigoso. Cair nos trilhos àquela hora equivale a atrapalhar o trânsito e ser enterrada como suicida. São Paulo é assim. Breve te mata, mais rápido te enterra e te culpa.

Sorrio. Mais um pouco meu corpo se cola ao dela. Percebo seu medo, não de cair no trilho, mas de que eu esmague suas rosas. Sorrio de novo e a protejo aos empurrões enquanto embarcamos. Suas rosas intactas, estamos dentro do vagão. Ela percebe meu sorriso cúmplice e sorri de volta e quase no mesmo instante começa a contar sua história.

Ela soma agora 50 anos.Trinta e três anos. Esperou trinta e três anos pra receber aquele pedido de casamento. Ainda menina, 17 anos, no interior de Minas Gerais, conheceu o amor. Mais uma daquelas histórias que não se sabe como, nos desencontros das bocas, se perdem pela vida. Eles se perderam. E casaram com outros amores que a vida lhes trouxe. A vida se encarregou de distanciá-los, mas nunca foi capaz de fazê-los esquecer. A mesma vida cuidou de traze-los de volta. Ela separou-se. Ele enviuvou.

Viúvo tratou de voltar a Minas Gerais. Quase que fatalmente a reencontrou. Mas, cidade pequena, mulher separada, já muito falada, melhor evitar.

Ela o deixa partir, de novo. Mas São Paulo é grande, tão grande. E ela, corajosa, tão corajosa. Aqui existe espaço para amar com menos culpa. Não sem culpa. Pois a culpa é recheio e cobertura de todas as religiões e sociedades. Mas São Paulo, tão imensa, lhe permite esquecer a condenação alheia. Lá vem ela aceitando o convite para jantar. Cruzou o estado para jantar com ele, me conta sussurrando. E jantaram.

Mas a fome que tinham não se resolvia na mesa do restaurante. Era fome de dizer o que não foi dito, por tantos anos. Fome daquelas que se descobre, rápido, que na verdade é melhor não dizer mais nada. Não é preciso. E desta vez, as bocas se desencontram, mas se descobrem no corpo. E ali se encontram. E se perdem de novo, num vai-e-vem que tem o intuito de desvendar segredos e partilhar fluidos. Vejo no rosto dela o gozo que não pode contar.

Na manhã seguinte antes de o relógio gritar, o pedido:“Casa-te comigo, porque tu és o ar que respiro.” Não há tempo pra pensar. Nem tempo para responder. São Paulo não para. Sai apressada, não pode perder o horário na rodoviária. No caminho deixa o buquê mas recolhe dois botões. As rosas a lembrariam que havia um pedido a ser respondido. Aqueles botões lhe convenceriam que havia sentido em tanta espera. Eles fariam dela, alguém especial na multidão.

Os dois botões entraram na estação Brás e saíram na estação Sé. Intactos. Protegidos por meu olhar atento. olhar que a viu se perder na multidão da estação Sé, na multidão anônima. Nunca soube se um dia ela aceitou o pedido. Isto não importa…afinal…é horário de pico em São Paulo e eu preciso ir.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 06/09/18)

A Louca

As roupas sujas, o cabelo despenteado, seu olhar perdido.
A noite toda parece estar dentro dela.

A voz rouca não sabe cantar, a boca seca como seca é a vida.
Os braços que outrora produziam sons, agora pendem ao lado do corpo e nada parece fazer sentido.
A rua longa.
As pessoas, todas, insuportáveis.

Em sua insanidade ela pensa que não a enxergam.
Acredita que só ela vê tudo, pensa que seu corpo enfadonho esconde-se atrás de seu silêncio. Se não responder será como se não estivesse ali.
Então se cala.
Ouve, mas faz que não está lá.
Calada pensa que se torna invisível e invisível não precisa ser gente.
Não precisa mais ter imagem, ter rosto pintado, boca manchada pelo batom.

Pode esquecer os cabelos em um novelo, como se fosse lã abandonada.
A pele sem vida, as mãos ásperas.
O corpo encurvado, que sangra todo mês, insiste em lembrar que ela ainda está ali, mas ela pode mentir, dizer que não viu, que não sabe, que não é.

Anda pelo quintal com fome.
Ela ainda sente fome.
Tanto faz se é dia, se faz sol, se é frio. Não sente frio mais.
O frio que vem de fora não pode alcançá-la. Nem o calor. Nada a alcança.
Nem a voz delas.
Nem a ausência dele.
Só as pedras que junta nas mãos e carrega para um canto do quarto.
Só as pedras a tocam.
As pedras que junta na mão e com calma escolhe no quintal.

As pedras estão ali. Ela não.
Ela já se foi, e só o corpo que sangra, permanece andando pelo quintal.
Louca. Insana. Completamente sozinha.

(Postado no blog www.aspirnas.urubu.com em 30/08/2018)

domingo, 26 de agosto de 2018

Ainda Estou Aqui

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 23/08/18


- Boa noite, filha.

Começo assim aquela conversa via whatsapp.

- Sabe, eu não sei o que dizer...

E não sabia mesmo. Desde o começo, a sensação de oco no meio do estômago.
Parece que me deram um soco.
Continuo escrevendo e reinscrevendo a conversa e enviando quando fica minimamente inteligível.

- Tenho um medo horrível de não encontrar as palavras certas. É primeira vez na vida que não encontro palavras. Eu não sei o que dizer.

(Repito isto diversas vezes e de novo é verdade).
Continuo a conversa, ela não visualizou ainda:

- Só sei que me pergunto onde é que eu estava quando tudo isto acontecia em sua vida.
Como eu pude não perceber???
Como eu pude não perceber?

(Repito isto todas as vezes que me olho no espelho, numa acusação dolorosa)

- Passarei muito tempo me perguntando isto.
Me perguntando como você deve ter sofrido com meus comentários. Me perguntando como te fiz sofrer sem saber. Sem sequer conceber algo assim. Durante muito tempo, irei me perguntar. Mil vezes. Mesmo assim, outra parte de mim não consegue acreditar. Você teve tantos namorados. Por favor me ajude!

E agora de novo é verdade.
Preciso que ela me ajude.
Eu não sei mais o que dizer.
Preciso que ela me ajude a ser melhor do que isto que estou sendo.
Como seria fácil se eu apenas fizesse de conta que estava tudo bem.
Seria o certo. O politicamente correto. O socialmente correto.
Desculpem se não disfarço minha ignorância.
Sou apenas a mãe dela e estou com medo.
Continuo a enviar mensagens pedindo aos céus que ela leia logo:

- Sabe, nunca senti tanta dor. Meu corpo todo dói.
Dói. Eu não posso aceitar, filha, que você omitiu isto de mim a vida toda.
Dói. Eu não sou boa o suficiente para ter as palavras certas.
Não encontro a frase certa para dizer e me sinto um lixo de mãe por isto.
Dói. Eu amo você. Amo.
Eu simplesmente não sei como lidar com isto.
Preciso aprender a te conhecer.
Me ajude filha, por favor.
Não sei mais ser sua mãe...

(Agora eu já estou chorando. Um choro cheio de soluços)
Ela visualizou.
Está digitando.

“Mãe, quem sabe se a senhora parar de se culpar ajude.
Quanto a não saber ser minha mãe pesquise no yotube. Lá tem de tudo. Aprendi a fazer caipirinha lá!”

Corro para o yotube e digito: homossexualidade; bissexualidade.

- Filha, apareceu de tudo lá, mas nada que me ensine ser sua mãe agora.

Ela responde:

“Mãe, eu estava brincando.
Não precisa de manual. Ainda sou eu aqui”.

Sim. Ainda é ela lá.
Mas já não sou eu aqui.
Sorrio.
Percebo de novo que ela mais ensina a mim do que eu a ela.

A Luva

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 09/08/18



A mão, sempre enluvada.
Tecido fino protegendo a pele igualmente fina.
Mas estava calor e ela tirou a luva.
Bastou um segundo. Antes que ela percebesse, ele pegou sua mão.
Parte preciosa do corpo, muitas vezes a única parte que ela deixava exposta.
E ele a tocou.
Não levemente, com as pontas do dedo.
Não.
Ele pegou em sua mão e ela não esperava.
Desde o começo, ela não esperava nada.
Ele fez troça com ela dizendo que não sabia beijar.
O beijo dele se tornou então o inferno dela.
Sonhava com este beijo, desejava o beijo.
Ela sabia que se ele a beijasse estaria perdida.
Se perderia e se encontraria, nele.

E então naquele dia, justamente ali, ele pegou a mão dela.
E no instante que ela puxou a mão, soube que se perdeu de si.
Era para esquecer.
Toda lembrança boa um dia passa.
Mas aquela não tinha fim.
E na mão que ela tirou da dele ficou a certeza de estar perdida.
Perdida no cheiro das manhãs, no afeto doce dos cuidados.
O inferno desta perdição, acuado em cada gesto inesperado dele.

E na mão dela, que ela tirou da dele, ficou a surpresa, o susto e a espera.
Espera de mais dele nela.
Espera de noites inteiras, depois de manhas aquecidas.
Espera nos lençóis desbotados, das equinas perdidas.
Espera de canções repetidas, em noites mal dormidas.
Espera dos olhos dele perdidos nos dela, numa espera sem fim.

E na mão que ele tocou, ficou o cheiro e o gosto dele.
E agora, ela beija esta mão, toca seu corpo com ela e espera por ele novamente.
A mão que agora tem fogo, arde de amor.
E ela nunca mais usou luvas.
Nunca mais.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Transformando


Em transformação.
Mais que ontem menos que amanhã.
Minha meta é ser livre.
Livre da opinião alheia.
Livre da industria da culpa.
Livre das migalhas de um amor que nunca será meu.
Livre das lágrimas de um passado corrompido pela dor.
Livre da necessidade do alheio.
Meu cabelo, curto ou comprido, liso ou cacheado, preto ou prata...
meus cabelos podem até cair mas não podem falar de mim mais do que eu mesma.
Minha saia rodada, curta e bordada, tem que esvoaçar, doa a quem doer!

domingo, 15 de novembro de 2015

Devagar...4.0


Faz tanto tempo que não escrevo por aqui...
Mas este ainda é meu lugar.
É para cá que sempre volto...

Faltam 15 dias para meu aniversário.
Não um aniversário qualquer.
Completo 40 anos.
Outrora; quando menina; nesta data, escrevia em um velho caderno que chamava de “Diário”...
Depois, com os anos, os textos não são mais secretos e os verdadeiros segredos não são mais escritos em canto algum além da alma...
Devo dizer que gosto do que sou.
Gosto imensamente da história que escrevi com minhas próprias mãos, com meu suor, com minha capacidade de dizer não ao que me faz mal.
Minha infância ainda permanece como um lago escuro onde um assobio me tira do medo.
Minha infância ainda é um lugar onde não gosto de voltar.
Carrego em mim algumas cicatrizes causadas por esta insana mania de amar.
Carrego o peso abjeto de ver minha alma exposta sem nunca ter tido o direito de resposta.
Porém das escolhas que fiz na vida, uma delas foi a de seguir adiante na certeza de que um dia o acerto há de chegar.
Com todo este aparente fel, eu te afirmo que minha alma canta. Canta e é doce.
Minha alma é doce pois descobri que quem faz as escolhas sou eu.
Eu escolho. Eu decido. Eu determino a mulher que quero ser.
E eu sou exatamente a mulher que quis ser.
Com todo este poço de dúvidas, com esta alma inquieta e com esta boca seca...eu sou o que quero ser.
E gosto.





sexta-feira, 17 de abril de 2015

Meio segundo

Seus olhos cruzaram com minha boca.
Minha boca sonhou a tua.
Um suspiro, a lucidez.
O riso, o desconcerto, o tropeço.
Sua mão no meu braço, sua mão em minha cintura.
De novo o olhar, o pedido.
Meio segundo e dizemos não.
Sua mão em minha nuca, meu corpo perdido em sua boca.
Sua fala rouca me faz tremer; meu corpo rouco treme em você.
Você me cala, em meio segundo.



sábado, 4 de outubro de 2014

Uma única vez...


Rasgo todos os papeis mas não consigo rasgar a falta que você ainda me faz.

Te conto das horas que penso em tí, mas você emudece, não entende.

Fujo deste sentimento, busco asas que me levem para longe de você, mas não consigo fugir deste silencio que me atordoa.

Você esta na multidão de amores e de "ais" que não posso viver, está no riso contido, na barra da roupa que eu nunca vou poder te fazer.

Aquele cheiro forte, que não posso sentir, sua barba no meu rosto, sua mão em meu pescoço...
Tudo, que só posso desejar.

Ando pelos cantos todos, esperando que venha me encontrar, mas você não vem.

Tudo, em cada mensagem contida, tenta te lembrar quem eu sou, mas você parece ter esquecido.

E no canto esquecido, do quarto esquecido, tento rasgar todas as horas que agora passo sem você...

Rasgo meus versos, rasgo as fotos, rasgo as lembranças.
Só não consigo rasgar de minhas entranhas este desejo de que me tenhas.

Uma única e última vez.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sashimis, paredes lilás e teus olhos.


Quando criança respondíamos aqueles caderninhos com perguntas que passavam por todos na sala de aula e perguntavam do que gostávamos.
Sempre achei que a real intenção era descobrir quem gostava de quem na sala de aula. Aliás ainda acho.
O fato é que com o tempo percebi que um bocado de resposta que dei naquela época não condizia com a verdade.
Era mais uma vontade de que fosse verdade. Gostava do rosa porque o rosa é bonito...mas nunca escolhi nada rosa para minha vida. No fim sempre escolhi o azul. O lilás. Até o amarelo. Mas nunca o rosa. Acho até que detesto o rosa.
Naquela época eu jamais diria que gostava de peixe cru. Até por não haver provado. Mas principalmente para que nenhuma criança ficasse com nojo de mim.
Hoje sei que gosto de sashimi.
Não, não gosto de comida japonesa. Só do sashimi de salmão e do Sushi Califórnia. Só de pensar a boca fica cheia de água.
Adoro salada. Bacias de salada temperada com limão e azeite.
Descobri que só gosto de feijão feito no dia. Fresquinho.
Requentar feijão, jamais.
Ou seja descobri que sou um ser "fresco", nojenta, insuportável. Odiei isto.
O que me salva é meu prato favorito, algo bem acessível: arroz, feijão, salada de tomate com cebola e ovo frito.
Ovos. Amo. Omelete, cozido, frito, mexido.
Pode convidar-me para almoçar em sua casa pois como praticamente de tudo.
Adoro comida mineira. Mas é que o famigerado peixe cru foi um segredo que guardei por muitos anos.
Agora é moda.

Quando o assunto era roupa as respostas não podiam ser mais mentirosas.
Primeiro por eu não ter nenhum item que dizia gostar. Segundo por não querer ter.
Descobri que prefiro sentir-me confortável do que bonita e que se beleza é fundamental me dei mal.
Roupa para mim não pode ficar caindo, pegando, enroscando. Sapato alto é lindo, mas...só de vez em nunca.
Cabelo? Só não raspei para não chocar a sociedade. Simplesmente não sei o que fazer com os meus. Não gosto alisados quimicamente e , confesso, não gosto do jeito que nasci. Sou obrigada a mentir? Dizer que acho lindo? Mentira! Detesto! Acho eles horrorosos. Mas prometi que este ano vou deixar crescer crespo mesmo. Deus me ajude.
Amor? Amor eu gosto se for leve. Gosto de dar colo mas também gosto de receber colo.
Este negócio de ser dona de casa meio mãe do cabra não é comigo. Se for para rolar troca de papeis prefiro ser a filha. Quero carinho, cuidado.
Sou forte da porta para fora, dentro de casa sou uma criança. Mereço isto e me dou isto.
Pois é...tudo bem diferente do que o último caderninho que respondi no colegial.
Entre sashimis, paredes lilás e teus olhos, hoje sou feliz.
Mesmo sem saber, achei o caminho certo.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

DOLORES

Eu a conheci quando era menina.
Já não atendia por este nome.
A pouco tempo Dolores resolveu me contar quando foi que mudou de nome.
Dolores...
Seu nome já era um decreto de dor.
Dor de fome. Dor de frio. Dor de não ter infância.
Sempre fora assim.
Dolores era um mau agouro.
Ela sempre tinha certeza de que se o nome fosse outro tudo seria diferente.
Depois parou de pensar no nome e começou a ver o mau agouro em si.
Não tinha jeito. Era feia.
Até tentava fazer um charme, mas seu jeito esquelético, seu cabelo sem forma, sua pele manchada, encardida, nada dava a ela a graça de outras meninas de sua idade.
Cresceu maldizendo a vida por sua feiura, e pelo lugar onde nascera.
Um lugarzinho qualquer, perdido no meio do nada, do qual se ela disse o nome um dia, já me esqueci.
Dolores casou!
Ah, sim! Arrumou um marido! Homem grosso, de poucas palavras mas trabalhador honesto que precisou de uma boa moça para cuidar de suas roupas e comida quando sua mãe morreu.
Mas Dolores nunca pode ser mãe e aí creditou a maldição de seu destino, novamente, ao nome.
Era o nome maldito!
Seco o útero e seca era ela.
Não viu outras possibilidades, não pensou em estudar, em viajar com o marido... Agora tinha marido, economias, até a pele deixou de ser tão encardida...
Mas não, nunca pensou em fazer planos com o marido quando descobriu o útero seco.
Só pensava no decreto que havia sobre ela, por onde fosse o vexame de carregar aquela dor iria junto.
Rastejava pelo chão pensando no fardo da vida, lavava as roupas com mãos cheias de nódoas, e as roupas ficavam amarelas como eram suas mãos.
Limpava a casa com uma vassoura suja e a casa nunca ficava de fato limpa.
As teias de aranha tomavam tudo e ela dizia: Nome maldito! Nome maldito! Maldito destino de sentir dor!
Não tinha doença alguma no corpo...só era suja e agourenta.
Seus lençóis eram amarelados, suas roupas eram amassadas, seus cabelos embaraçados.

Um dia Dolores acordou e decidiu ir embora.
Iria para qualquer cidade, em qualquer lugar.
Pegou as economias que tinha, que eram bastante já que não gastava com nem um único corte de vestido. Achava que nada melhoraria o terror de sua feiura.
Deixou uma carta de adeus ao marido, liberando-o para novo casamento com alguém que não fosse seca.
Pegou um ônibus sem destino, e depois outro e outro.
Até que lembrou de uma amiga da mãe, que certamente a receberia.
Lá antes que a outra lhe cumprimentasse ela levantou a mão, quase histérica:
"Não! Não fale este nome! Meu nome é Eulinda! Eulinda e não se fala mais nisto!"
A última vez que vi Eulinda estava bem. Continuava com aquela figura esquelética, mas agora os cabelos eram escovados, brilhantes. Usava um belo vestido floral, fino e leve que lhe dava um ar jovial.
Ouvi dizer que amigou-se com um homem que não pode ter filhos. Ela, generosa, não lamentou por isto.
É dona de casa prendada.
Quando lava as roupas as mãos já não são cheias de nódoas.
Na certidão ainda grita o nome Dolores.
Mas ela nega.
Diz que foi engano do tabelião e que sua mãe sempre quis lhe chamar de Eulinda.
Vai entender..

sábado, 7 de dezembro de 2013

"Burro bom, carga nele"


"Burro bom, carga nele". Esta foi a melhor que li hoje no perfil de um amigo...
E é verdade.

Ontem confabulava que o verdadeiro gestor trata as pessoas como indivíduos e não os nivela com uma chibata.

Existem pessoas que só trabalham aos empurrões.
Outras que nem assim.
E existem aquelas que saber o que devem fazer e farão.
Um pouco de respeito com estas ajuda a tornar as coisas mais fáceis para todos.

Porém não é o que acontece.
Ainda vemos muitos pensando que produtividade tem algo a ver com ordens e minutos contados.
Prazer em ter poder. Prazer em mandar. Ridículos que inventam ordens o tempo inteiro por ter medo de saírem de seu pedestal e mostrarem que são de carne e osso como todos.
Que riem.
Que cantam.
Que profissionalismo deixou de ser sinônimo de escravidão há muito tempo, que trabalho não precisa necessariamente rimar com enfado e canseira e que absolutamente ninguém nasceu para ser um parasita. Um trabalho bem feito pode dar prazer quando respeitado.
Quaisquer que seja este trabalho.
Basta respeitar a inteligência alheia e você terá excelentes profissionais ao seu lado.
Basta respeitar a limitação alheia e você será também respeitado.
...e vale lembrar o que digo sempre, como já dizia a canção: "Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada". Por isto, gerenciar pessoas deve ser antes de tudo sentir-se como uma delas e não acima delas.
Beijos e bom sábado.
Eliana Klas.

Segundo Tempo: 3.8


Faz muito tempo que não escrevo para postar em meu blog.

Nem mesmo por ocasião de meu aniversário, que foi semana passada, fiz isto.

Também não tenho lido e me abstive de participar de qualquer tema de ocasião.

Precisava de um ano onde tudo parasse.

Longe de tê-lo tido, em meio a tantas mudanças que ocorreram em minha vida neste ano, dei férias ao meu cérebro.
Ele estava precisando.
Quem não nasce com capacidades além da média acaba tendo curto-circuito quando força um pouco o raciocínio.
Acho que foi isto que aconteceu comigo.
Ou talvez tenha sido apenas devorada por meus sonhos.
Nunca vou saber. O fato é que precisei de repouso mental.
É mole?
Não ler muito foi a pior parte.
Evitar os pensamentos incessantes.
Contar carneiros e dormir. Coisa bizarra.

Não sei ainda se deu certo e se algum dia voltarei a ser quem fui, sei apenas que um ano passou...meu prazo acabou.
Tenho medo da pessoa que vou encontrar dentro de mim e um medo maior ainda de encontrando-a não reconhecê-la...

O fato é que, para quem me conhece, tudo vai bem por aqui, obrigada.

Durante este ano a Revista Cruviana foi lançada em versão impressa no Rio Grande do Norte o que me causou profunda satisfação.
O jornalista José de Paiva Rebouças e todos os envolvidos estão de parabéns e sinto enorme honra por ter tido um dos meus textos publicado nela.

Justamente um texto que fiz aos supetões em meio ao que condicionei chamar de ano sabático.
Em 2014 pretendo voltar a fazer o que gosto.
Cuidar de mim.
Escrever.
Pintar.
Ah, e vou lembrar de aprender a fazer algo novo, mosaicos de mandalas possivelmente, assim talvez eu encontre o silêncio que tanto faz falta para minha alma.

Bora lá, que aos 3.8 o segundo tempo começou

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Até quando amar?




Dentro de um certo espaço de tempo, havia um encontro onde ambos estavam.

Este encontro não tinha data prevista e podia levar um longo intervalo, de até dois anos, ou mais.
O fato é que de tempos em tempos, ambos dividiam o mesmo espaço.
Várias vezes sequer chegaram a se encontrar, devido a infinidade de atividades que o evento oferecia e ela passava a maior parte do tempo, tentando descobrir se ele desejava vê-la, como ela ansiava por este reencontro.
Nas pouquíssimas vezes que se viram, nada foi dito,como sempre fora nos últimos 22 anos.

Ela tinha dezesseis anos quando o conheceu, ele 24 recém completos.
Encontro de novela que só não descrevo aqui para preservar a identidade de ambos.
Mas tenho certeza que apaixonaram-se um pelo outro no exato momento que sentaram-se próximos.
Ela, tola, sonhadora, acreditava em tudo que ele dizia.
Ele, louco para impressionar, lhe contava causos sobre tudo que você possa imaginar. E sempre com ares de verdade absoluta.
Oito anos de diferença, hoje parece pouco, mas naquele tempo transformou-se em um enorme abismo entre ambos.
Ela, inexperiente, medrosa, mal informada.
Ele...ela nunca soube. Hoje ela desconfia que ele era tão inexperiente quanto ela.
O fato é que nunca saíram do zero x zero.

Tentaram tornar-se amigos, mas ai doeu mais.

O fato é que foi cada um para um lado, viver suas vidas, formarem-se em suas profissões, formarem suas famílias.
Mas...o tal encontro, este continuava sendo lei, afinal, passava o tempo mas chegava o dia, dia em que ela sabia que ele estava lá.
Nunca soube se causava a ele o mesmo impacto.
Por diversas vezes sequer se falaram.

Mas ontem ela me ligou. Confessou que precisava falar com alguém.
Na tarde anterior havia sido o encontro Internacional, e lá estava ele. O local era aberto, grama verde. Pela primeira vez, assim que ele chegou ela notou um certo alvoroço e percebeu que ele queria falar com ela, e a esposa tentava impedir.
Ele estava agressivo e chegou a ser violento com um amigo que tentou demovê-lo de sua intenção.
Finalmente, a sós, sentaram-se ao lado um do outro.
Ela, apreensiva.
Ele, lindo, exatamente como ela lembrava-se, tocou em seu rosto com ternura e disse:
Quando sairmos daqui, tudo voltará a ser como antes, mas não posso levar mais vinte e dois anos para lhe dizer o que deixei de falar no passado:
Eu te amo.
Levantou-se e foi embora.
Ela, sentada na grama, sorriu.
Eu também te amo, pensou.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A Minha Paz tem meu nome.


Todos os dias eu respiro fundo e busco dentro de mim o meu melhor.
Todos os dias eu respiro fundo e prometo que enquanto eu estiver praticando este melhor, nenhuma pedra no caminho tirará de mim minha paz.

E estar em paz, algumas vezes, é quebrar tudo na frente do templo.
Quem já leu a bíblia sabe do que estou falando.

Paz não é somente silêncio.
Paz não é somente sorrisos mil.
Paz não é aceitação pura e simples de tudo.
Paz é saber para onde esta indo e não desviar-se do seu destino, ainda que muitas vezes seja necessário contornar montanhas.
Existe um motivo para todas as coisas. Acho.
Eu sei quem sou. De onde vim. Os motivos pelos quais vim.

A minha paz tem meu nome, e ninguém a pode tirar de mim.

A minha paz chama Eliana Klas, tem meu sangue, quente, porém doce. Pode apostar!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Um, dois, três...


Tenho frio e sei de onde ele vem.
Vem da fé que me faz falta.
Não acredito mais.
O relógio, só ele existe.
Ele marca o tempo.
Um, dois, três...fim.
Fim.
O meu, o seu.
Nada existe e eu não faço parte de grupo algum.
Nenhuma ideologia pela qual se valha a pena viver. Morreria por todas elas, pois a vida é um fardo.
Todo dia o acordar, o arroz, feijão, beijo na boca e amor correspondido.
Tentas contentar-me mostrando-me os passarinhos, mas eles também nada dizem.
O compasso do relógio marca a angustia do meu peito.
Respiro fundo, tento de novo.
Um, dois, três...cadê o fim?
Ar, preciso de ar e calor.
O relógio irá trazer minha fé de novo.
Um, dois, três...


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Vírgulas.


Olhar para dentro e reconhecer-se. Aprender a usar vírgulas.
Descobrir que o amanhã é mistério, e conviver com isto.
Existe um silêncio enorme ao meu redor, em todos os meus sentidos.
Entrego tudo que sou a este silêncio.
Eu que nada temia agora tenho medo do escuro e de minha própria voz.
Temo que ela diga coisas que não pensei.
Tenho medo dos meus sonhos. Temo que eles me levem para onde não sei.
Os dias arrastam-se neste silêncio, e eu, quieta, reaprendo a viver.
Lá fora cai uma chuva fina, de um janeiro que escondeu seu verão.
Cá, com minhas vírgulas,tateando-as, guardo-as para quando o silêncio passar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

37, e ainda é primavera.


Todo ano escrevo alguma coisa especifica sobre meu aniversário.
Faço anos, já os fiz antes e continuarei fazendo.
Não há nada novo para ser dito sobre isto.
Para quem tem a primavera como berço todo o resto fica pequeno.
Nascer na primavera é poder completa-las eternamente.
É gostar de cada ruga e só não aprovar os cabelos brancos.
Nascer na primavera é permitir-se reaprender a viver.
Feliz dia para mim

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Deste feriado eu só quero as cores.


Deste feriado eu quero mais que os dias.

Eu quero a cor e a poesia que sei existir dentro de mim.

Deste feriado eu quero a inspiração que parece ter sido tomada de mim. Deste feriado eu quero a minha força, aliada ao que preciso para manter minha calma.

Deste feriado eu não quero o sono apenas.
Eu quero as noites bem dormidas e os dias bem claros, bem vividos.
Da vida eu quero pouco.
Quero apenas vivê-la na plenitude do que sei ser capaz.

Sei o que posso e ningúem, além de mim, pode tirar-me isto.

Deste feriado eu quero as cores do meus vasos, vasos que pinto pelo jardim de minha casa.
Quero o silêncio dos que gostam da própria companhia e uma boa música, brasileira de preferencia, tocando na vitrola.
Quero muito, dirão alguns. Eu digo que quero o que posso.
Beijos e bom feriado a todos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Charles Chaplin e outras conversas.



Meus ídolos estão vivos e o acesso às artes em Guaianases???

Todos na esfera virtual já sabem que sou fã (nática) pelo Raul Seixas além de ser fã (muito) do Zé Geraldo. Sou Zégeraldiana e todos por aqui sabem disto.

Sabem que na parede do meu quarto havia diversos quadros com fotos do Raul.
Por sorte ao contrário de muitos eu não posso me gabar e dizer “meu ídolos morreram”. Tenho dezenas de ídolos muito vivos, caminhando pela terra, alguns deles bem ao meu lado. Outros caminham já noutras esferas, todavia permanecem vivos, em mim.

Idolo, é todo ser que foge da esfera medíocre, da simples existência. Eu vivo cercada de gente assim.

Os que morreram ainda vivem em sua arte, e é aqui que entra a novidade do dia: poucas pessoas sabem que também sou fã (nática) do Charles Chaplin.

Pois é. Sou. Sou fã do Charles Chaplin, cineastra, ator, diretor e sobretudo gente. 'Raçudo' como só ele soube ser. Vagabundo? Não, o bicho tinha pedigree, não tenho dúvidas sobre isto.

Na mesma parede repleta de fotos do Raul, havia no centro de todos os quatros um, que peguei do quarto do meu irmão, quando ele mudou-se, e coloquei isto aos (+ ou -) 15 anos de idade, um quadro com a foto do Chaplin, ou melhor do Carlitos, personagem celebre de “O Grande Ditador”.
Sou fã da arte em todas as suas expressões.

O cinema é outra forma de arte que sempre me absorveu e que infelizmente, assim como o teatro, é reservado para poucos.
Guaianases não tem cinema. Pior do que não ter Shopping meu bairro não ter um teatro e um cinema.

Pois é. É desta maneira que querem nos incluir ao todo, negando-nos as formas mais elementares de acesso a cultura.
Enfim...bora mudar de assunto que é pro estomago não embrulhar.
Deixo aqui uma citação do artista, do homem, do mito, da lenda viva Charles Chaplin:

“Nada é tão belo a ponto de fazer as pessoas se esquecerem de seus ovos e bacon no café da manhã; quanto à admiração do mundo, isso vale nada, pois no final só há você mesmo a agradar: você faz tudo aquilo porque significa algo para você. Traballha porque tem uma superabundância de energia vital. Descobre que, além de fazer filhos, também pode se expressar de outros modos. No fim, é você – só você -, seu trabalho, seu pensamento, sua concepção do belo, sua felicidade, sua satisfação. Seja corajoso o bastante para encarar o véu e leventá-lo, e veja e conheça o vazio que ele esconde, e fique diante deste vazio e saiba que dentro de você está o seu mundo...”Charles Chaplin - 1922

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Pulso


Hoje eu sonhei que te beijava.
Te beijava e você andava comigo de mãos dadas, tua mão segurava a minha e seus dedos tocavam meu pulso.

Soltei tua mão, envergonhada, quando alguém apareceu no caminho.
Sorri, pisquei.

“Prometo que serei tua.”

Seus olhos grandes piscaram de volta.
Teus olhos sempre procurando algo em mim.
Sua língua sempre passando pelos lábios. Seus braços cruzados, e eu falando.

Acordei sentindo o seu beijo e passei toda a manhã com o calor dos seus dedos no meu pulso.


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Errante.


Quando o pensador; ou mero pensante, tolo e teimoso; sofre, emana força.
Ainda que muitas vezes a luz se reflita em cores escuras, no pântanos e no lodo
O reflexo é luz.
Seu sangue, suas lágrimas, seu suor: tudo transforma-se em arte.
O seu grito, seu sussurro, o seu medo, sua pálida secura, o desespero dos insones: é ali que a arte se consuma.

Na dor, na eterna dor dos que não são amados, no desespero dos que foram abandonados, na fome que sente-se ao sentar-se a mesa, ou no desassossego febril no olho do passante, viciado, doente.
É ali, naquela miséria que nasce a flor, linda, amarela, do meu quadro favorito.

Nas vestes rotas que já colocou sobre a pele, no chinelo podre que quebrou quando ia para a escola, no vestido que usou, e se pensou linda, e na verdade era só era uma camisa velha amarrada com barbante...é nestas lembranças que a moça compõe sua mais doce balada.

É na dor miserável que come o cérebro, das lembranças tenebrosas de uma infância maldita, que o cronista compõe a sua escrita..

É na dor, na insônia, na fome, na ruptura da pele lisa, na boca aberta e seca.
É ali, também, que nasce minha poesia...
Retalhada e feia.
Mal escrita, mal pontuada,sem acentos, mal descrita.
Feia. Mas minha.
Errada, errante, vomito.
Mas minha.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Prudência...e medo.



Prudência e chá de camomila não fazem mal a ninguém.
Sei disto.
Porém prudência em nossa sociedade é sinônimo de medo.
Não basta ser prudente. É necessário tornamo-nos prisioneiros do medo.
Ser prudente é ter grades nas janelas e não andar a noite.
Somos prisioneiros ou cumprimos regime semi-aberto.

Somos assaltados e nos sentimos culpados por isto.
Mas a culpa é sempre nossa?
Somos culpados por sermos bandidos e culpados por não sermos.
Ser bandido não é mais sinônimo de infância pobre.
Não é o dinheiro que temos que compra o caráter dos nossos filhos.
E sempre somos culpados.

Se reagirmos somos culpados pelo tiro que nos mata, ou pela morte de alguém que não teve escolha ou não soube escolher.

Se não reagimos somos culpados por termos sido roubados.
Somos culpados por perder os bens que compramos a duras penas.
Somos culpados por vermos roubado o celular que nem pagamos.
Somos culpados por nos expor ao perigo, afinal, é imprudente querer gozar do nosso direito de ir e vir.

Somos fruto de uma sociedade corrupta e que sendo corrupta nos corrompe.

São 04h35 da manhã.
Acabo de deixar minha filha em seu quarto para dormir.
Assustada, tremendo, com medo.
Tive de, praticamente, colocá-la em meus braços e cantar para ela como eu fazia quando ela era só um bebê.
Não sei cantar, não consigo colocar a letra na música certa...então inventava minhas próprias canções e a embalava para dormir.
Fiz isto até ela se acalmar.

Ela foi assaltada, ao que me lembro, 04 vezes. 02 delas no ultimo trimestre.
Duas vezes no meio de uma singela tarde de sol.
Roubada. Intimidada. Amedrontada. Roubada a luz do dia, nas ruas do bairro onde mora.
A penúltima vez, ás 19h, horário de verão. A luz clara ainda,em uma rua movimentada dos arredores de uma das maiores estações da CPTM de São Paulo, com um fluxo de centenas de milhares de pessoas por dia.
Foi jogada no chão na tentativa de tirar o tênis.
Sua sorte foram os “guardinhas” da estação que correram e apitaram até que os bandidos fugiram.

A última vez foi ontem.
1h30 da madrugada.
Ah, agora sim. Agora foi culpa dela!
Pois é.
Mas não.
Em uma sociedade ideal uma jovem, acompanhada do seu namorado de 19 anos, pode pegar a última sessão do cinema, em um shopping movimentado, e ao final da sessão pegar um taxi para ir para casa.
Na zona leste de São Paulo não.
Ontem deu errado.
Saiu da plataforma principal do metrô Itaquera, rumo ao ponto de táxi que beira a Radial Leste.
Ela e o namorado foram encurralados, amedrontados e roubados.
Ela em pânico temeu pela vida dele. E em pânico ficou.
Desta vez podiam roubar mais que um bem.
Podiam roubar-lhe a vida, a vida de quem ela gosta.
E a culpa?
A culpa é deles, claro.
Afinal quem manda querer ir a última sessão do cinema.?

Em uma sociedade ideal as pessoas não podem ser assaltadas a luz do dia.
Em uma sociedade ideal as pessoas não podem ser jogadas no chão em ruas movimentas.
Em uma sociedade ideal as pessoas estão seguras ao ir a um shopping, ver a última sessão de um cinema e sentir-se-ão protegidas ao caminhar, até um ponto de táxi. (sobre a passarela principal de uma das maiores estações de metrô da zona leste, onde será o primeiro jogo da Copa do Mundo em 2014).
Mas, não moramos em uma sociedade ideal e quem não se aprisiona é culpado por ir e vir.
Em qualquer horário.

(Filha, não permita que o medo de faça prisioneira. Você não tem culpa por acreditar que vive em uma sociedade livre. Te amo.)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Inteira.



Bem, o blog se chama "eu, todos os dias". Isto significa que a casa é minha. Significa também que não estou muito preocupada em falar só de paixão, politica, arroz com feijão ou o que vier.
Tem dias que escrevo poesias pras minhas amigas, e o desejo delas é o meu.
Tem dias que conto a prosa que vejo no olho do moço e ele não sabe dizer.
Tem dias que só digo eu te amo, pro amor que deita comigo.
Mas hoje...hoje. Hoje vou dizer a quem amo, que simplesmente não quero mais.
É isto ai.
Faz parte. Não quero mais que vocês me façam mal. (e leiam o plural da frase antes de darem nomes aos bois).

Lá vai:

Inteira.

"Eu não sei ser rasa e este é meu maior defeito.
Mas algumas pessoas, ás vezes algumas das que mais amamos, não podem sair do nível raso de nossas relações.
Elas fazem por merecer o raso de nossas vidas.

Por mais que a amemos, nunca nada do que fizermos será suficientemente bom para que elas sejam capazes de demonstrar que se orgulham. Que está bom.
Tudo, todos os nossos esforços, todos os diálogos, todos os abraços, todas as conversas, todas as tentativas de aproximação sempre resultarão em criticas.

Algumas pessoas simplesmente não sabem receber o amor sem mágoas.
Elas são incapazes de compreender que você as ama apesar de todas as mesquinharias que elas insistem em cometer durante toda a vida.

Elas são egoístas demais para enxergar algo além da própria conveniência.

Amar as vezes é dizer não.
Não quero vocês em minha vida exatamente por que amo.
Amar vocês me faz mal."

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Bom dia.




Estou pouco me lixando pro seu conceito do que é política. O meu é este.
Consciência. Dignidade. Comprometimento ao menos com a própria consciência.
Não sou filiada a nenhum partido politico. Ainda não sei em quem vou votar. Ah, e devo avisar que não pretendo me filiar a nenhum. Mas não vendo minha consciência.
Não calo a única coisa de realmente minha, eu, que nada tenho de meu.
Só tenho minha voz, e às vezes nem isto.

Estou com nojo e vergonha de ser paulista. Não pela minha São Paulo, mas pelo que se vê pelas ruas.
Não tenho nojo da sujeira, nem das pessoas que vagam, tenho nojo do que tem sido feito pra esconder isto.

Desesperança.

Ler "Paixão Pagu"(edt Agir) fez-me lembrar de meu Pai.
A decepção dela lembrou-me o semblante de meu Pai quando voltou de CUBA.
O sonho dele era conhecer Cuba.

Conseguiu isto através de sua doença. 80% do corpo tomado pela psoríase. A tia pagou a viagem para tratar, em 1998.
Quando voltou a decepção era latente.
Nunca mais ouvi ele falando de Cuba.

"Então a revolução se fez para isto" (pergunta feita por Pagu na página 150 do livro que é sua autobiografia precoce) é a pergunta que eu via nos olhos de meu pai.
É a pergunta que eu me faço sempre.
Esta coisa de largar tudo pela causa. Virar mito, e no entanto, a decepção, profunda.

Enfim...eu ainda acredito na transformação.
Acredito no poder que o conhecimento dá a uma pessoa.
Poder de escolha, que muitos não tem.
O direito a educação de qualidade, que ultrapasse os limites culturais, direito a oportunidade. Acredito apenas nisto.
Acredito que apenas ensinar a pescar é ridículo se você não der o acesso ao lago, ao rio, ao mar. SE não der também a primeira vara, a primeira rede.
Ensine alguém a pescar e lhe dê o deserto. Me diga que peixe esta criatura irá pegar???

Enfim, isto tudo ai é um bom dia.
Desculpe o mal jeito. Eu nem acordei ainda.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Recuso-me

O barulho das paredes cai sobre mim.
Não, as paredes não caem, o barulho cai e me enterra embaixo dos seus pedregulhos.
Pedregulhos de vozes que gritam, de carros, de venenos destilados.
São pedras enormes de um barulho repugnante.
O barulho causa náuseas.

As paredes estão frias, o chão está frio.
O chão, embaixo dos meus pés sem meias, está tão frio que eu penso ser de gelo.
De gelo também é o ar e as pontas dos meus dedos.
Lá fora posso ver as poucas árvores que restaram no terreno em frente de casa...construções mal feitas, gente que passa sem olhar para os lados.

Fecho as janelas, todas, fecho também as portas.
Fecho a casa toda para reter o calor e deter o barulho.
Apago as luzes para que ninguém saiba de mim.

Entrego-me ao silêncio, ao calor. Com a casa toda fechada consigo reter calor.
Acendo a luz, novamente. Só uma.
Conto todas as contas do meu colar, todas as conchas do meu tesouro.
Leio todas as revistas velhas, relidas muitas vezes.
Releio o livro que gosto.
Evito escrever. Escrever traria a tona todos os meus fantasmas.
Aos poucos o frio dos meus dedos vai desaparecendo.
O chão derrete seu gelo embaixo dos meus pés.
O silêncio, maravilhoso, aquece minha pele, desce por minha coluna, retira toda dor.

Só não posso abrir as janelas.
As portas, elas precisam estar sempre fechadas.
E as luzes, apagadas.
Deixo só uma lâmpada acessa.
Só para te enxergar ao meu lado.
Você e minha única certeza, minha única verdade.
Lá fora, o mundo de gelo e barulho devora minha existência.
As luzes sempre apagadas me escondem de mim. Cá dentro eu me enterro, me nego, me recuso.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Vem...

(Os rabiscos abaixo deviam ser trechos de uma música...Sairam de dentro de mim em forma de canção, no calçadão. Sabe como é? Daquelas cantorias bobas, pra receber a tarde???
Pois é...são só rabiscos bobos, mas toda sexta-feira merece uns instantes de bobeira.)


Larga mão de ser tão sério e vem.
Se você quiser, eu quero.
Larga tudo e vem.
Se você me olha eu mostro, se você me beijar eu beijo se você me chamar eu vou.
Deixa tudo pra lá, e vem.
Se quiser falar, eu ouço,
Dou meu ouvido para teus ais e minha boca para sentir teus sais.
Ah, se você quer brinquedo eu brinco,
Se você quer chamego eu dengo, larga tudo e vem.
Ah...larga de ser assim tão certo, erra tudo e vem...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Avesso

O avesso de minha vida é o meu medo.
O nada, este escuro infinito,
A finitude dos corpos e o cheiro de barro.
O cheiro de barro, de lama. E a chuva que não para, dentro de mim.
Este avesso que revela a costura mal feita, o rasgo, o talho em um tecido que parecia tão belo.
O momento em que a linha e o pano se confundem, no avesso.
É neste avesso que moro, que sou, que me desconheço.
Neste avesso que não entrego, que nego, que escondo.
E é ele que complica tudo.
Neste avesso em que me perdi, não sei revelar o que fui.
Sei que estive lá, que de lá fugi e hoje não sei voltar.
Meu medo, meu grande medo, é voltar pra lá sem perceber.
No avesso desta que hoje sou está escondida a linha que desmancha toda minha vida.
No avesso de mim, mora alguém que não conheço...

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Espirro do anjo

Este texto foi publicado originalmente no blog "Aspirinas e Urubus"...http://aspirinasurubus.blogspot.com.br/2011/06/o-espirro-do-anjo.html
percebi hoje que tenho vários textos lá que não publiquei aqui...acho que vou trazê-los todos para cá...
começo por este, em homenagem a um amigo querido.


O Espirro do anjo.

Hoje, ao sair de casa, pude por alguns minutos observar meu vizinho pintando as grades do portão de sua casa.
Casa onde mora com sua esposa e seu filho caçula.
Enquanto eu o olhava minha mente foi inundada por recordações de uma infância que parece ficar cada vez mais remota.
A casa dele, assim como é a minha, pertence a sua família a mais de três décadas.
Faz tanto tempo... Mas olhando-o lembro que já fui criança um dia.
O mandamento de me tornar como uma criancinha ou não verei o reino dos céus parece ter sido esquecido por mim há muito tempo.

Olhando-o lembrei de alguns poucos dias nos quais eu ser uma criança não era feio.
Sim, pois tem pais que ‘teimam’ em criar seus filhos não para serem adultos honrados, mas como se já fossem adultos.

Olhando meu vizinho hoje cedo eu me lembrei – me do pai dele: Senhor Vicente...
‘Seu Vicente’, para os íntimos, o caminhoneiro da ‘cegonha’.
Todos que moram a mais de 20 anos na Rua ‘da Biquinha’ lembram dele, posso apostar.

Caminhoneiro por profissão ele se ausentava por longos meses.
Mas se existe algo que ficou em minhas memórias de infância são os gritos de alegria dos seus filhos quando entre uma e outra carga ele ficava algum tempo em casa.

Lembro-me de em uma noite fria; ao menos em minha memória aquela noite foi mais fria do que as outras e a solidão infantil doeu mais no meu peito; pois bem na tal noite fria, que não posso datar tanto tantos são os anos que de lá pra cá se foram, mas arrisco que eu devia ter no máximo 6 anos, portanto lá se vão 30 anos, na tal noite o caminhão dele ‘pousou’ em nossa porta, explodindo com seu ‘barulhão’.
.As crianças, meus saudosos amiguinhos de infância, desceram por seu longo quintal gritando:
Pápa!! Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!!Pápa!!! (Os filhos os chamavam de Pápa, sem o ‘i’ no fim, se sobre o frio não posso dar certeza, isto eu afirmo!)
Ouvi os passos rápidos deles no corredor ao lado de meu quarto e depois só a bagunça de gritos e muitas risadas.
A alegria deles com a chegada do pai foi algo que nunca esqueci.

E o ‘Seu’ Vicente mudava meus dias também.
Os espirros dele são lendários.
Até hoje tento imitá-lo.
Eram daqueles espirros de fazer gosto, bem altos, bem molhados, espirros dado por gente que não tem medo de ser feliz.
Depois, às seis da manhã, ele colocava o “bichão” pra aquecer o motor.
Eu ouvia os meninos mais velhos dele o ajudando com o caminhão.
Aquele ruído logo cedo não incomodava.
Eram ruídos de crianças felizes.

Não sei que tipo de pai ele foi.
Não sei se seus filhos têm dele boas ou más recordações.
Mas sei que em mim ele deixou doces recordações de infância.
Lembro que ele organizava competições entre as crianças na rua.
Competição de corrida pelo quarteirão.
‘Seu Vicente’ dava dinheiro a quem ganhasse e doces para todo mundo.

Estas eram uma das poucas vezes que eu me permitia competir.
Nunca gostei de esporte de competição.
Meu fôlego sempre faltava e eu ficava envergonhada por perder.
Mas com o ‘Seu’ Vicente por perto não era assim.
Ele chutava para longe minha vergonha de ser criança.
Ele nos empurrava e dizia: “Vamos menina, vamos, é só uma brincadeira!”

Ele construiu pouco a pouco a casa que deixou para os filhos, durante a construção com a chegada dos blocos, das pedras e areia, ele pagava a molecada para carregarmos bloco, areia, pedra, quintal acima.
E fazia isto de um jeito tão divertido que nem notávamos que ele estava nos ensinando o valor do trabalho!
Outra lembrança boa: as moedas que ganhei carregando os blocos da construção da casa do ‘Seu’ Vicente renderam bons lanches de “pão-com-ovo” que eu comia me lambendo, seguida por minha mãe e irmã do meio.
E renderam também muitos chocolates que tinham um sabor melhor pois eram comprados com meu dinheiro!
‘Seu’ Vicente em casa era certeza de fartura até para os vizinhos.

Ele se parecia com um anjo moreno.
Era redondo.
Bem redondo mesmo.
Seus cabelos cacheados.
E no rosto sempre um riso fácil.

Hoje, ao ver meu vizinho, seu filho do meio, pintando o portão, imaginei o ‘Sr’ Vicente ali ao lado do filho, sorrindo.
Anjo moreno, agora com asas.
Meu coração se encheu quando eu consegui ouvi-lo dizer:
“- Vamos menina, vamos, é só uma brincadeira!”
Sorri.
Meus lábios quase se abriram em resposta, mas achei melhor não assustar as pessoas falando com quem já não se vê entre nós.
Em silêncio respondi:
_ Eu prometo que vou, ‘Seu Vicente’. Prometo que não vou esquecer que isto aqui não passa de uma grande brincadeira.

Sai de casa jurando brincar como uma criança todas as vezes que me permitirem.
- E quando não permitirem, ‘Seu Vicente’, prometo fazer bagunça, muita bagunça

quinta-feira, 29 de março de 2012

Nação estuprada.



Eu nasci em meio à ditadura.
Cresci ouvindo o nome desta megera deformadora de almas que não era personagem de ficção.
Ela tinha nome e usava farda.
Lembro de meu pai falando dela, de seus gestos eloqüentes e indignados, quando falava de um ou outro amigo desaparecido.
Cresci sem entender um Estado que deveria nos proteger, todavia, canalhamente, torturou, estuprou e matou civis.
Era assim que eu via, era isto que eu entendia da tal ditadura.
De tempos em tempos eu ouvia noticias de que meu pai andava escrevendo coisas que poderiam prejudicá-lo.
E um pouco do medo dele se tornava meu também.
E eu nem sabia o que ele fazia de “errado”.
Era um medo que nascia sem que eu soubesse onde era seu berço.
Ouvia meu pai falando de amigos, anônimos, que sumiram, outros que pela tortura enlouqueceram.
Lembro de seus olhos marejados, a boca fechada em angustia, as mãos fechadas em dor.
Fantasma assustador era a tal ditadura.
Ela escondia pessoas e depois as devolvia, loucas, aleijadas, destruídas.
Ou ainda, jamais as devolveria...
As pessoas eram presas, e sob a tutela do Estado, desapareciam.

A ditadura matou, torturou e destruiu não só o individuo que levou sob o peso de sua mão.
Ela fez isto com os familiares de cada pessoa morta, torturada ou desaparecida.
Toda a família era despedaçada, e ainda é, mil vezes, sob o peso da injustiça.
Não quero imaginar o que é ter um(a) filho(a), um(a) irmão(ã), o(a) esposo(a) desaparecido(a).
Andar pelas ruas em uma vã esperança de tudo ter sido um pesadelo medonho e que, um dia, teu amor regressará.
Desaparecer na ditadura é deixar para quem procura a certeza da morte e a dor de nunca dizer adeus.
Não podemos seguir adiante sem jogar luz sobre este passado tão recente e que muitos querem que permaneça no escuro.
Precisamos juntar nossa voz em um só clamor pelo desarquivamento dos arquivos da Ditadura e pela revisão da Lei de Anistia.
O meu grito é o grito anônimo.
Não entendo de leis, mas me causa assombro uma lei ser usada para livrar assassinos e torturadores.
Quando menina a Lei da Anistia soava aos meus ouvidos como canção libertadora, hoje sinto que ela nivela vitimas e algozes.
Seqüestro, tortura e assassinatos cometidos sob a proteção do Estado não podem ser crimes políticos.
Torturadores não podem andar sorrindo livremente enquanto famílias inteiras foram despedaçadas. Isto não pode se repetir.
A luta para que o passado não caia no esquecimento não pode ser somente dos familiares e das vitimas.
Hoje nossa voz deve ser a voz de todo um povo.
É urgente a criação de um mecanismo, uma norma, que não permita que o Estado anistie seus próprios agentes.
Permitir o esquecimento dos crimes de seqüestro, tortura e assassinatos nos anos da Ditadura é o mesmo que permitir que o Estado estupre toda nossa nação, novamente, sob a sombra da lei.

Este texto faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR

http://desarquivandobr.wordpress.com/2012/03/18/convocacao-da-5a-blogagem-coletiva-desarquivandobr-3/

"Nossa luta é por justiça e pela preservação da memória. Para que se conheça, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça."

quarta-feira, 28 de março de 2012

E se ?

(Este texto é mais um dos rabiscos de outono)


E se?
Se um dia, loucos e vadios, desistirmos da postura séria e dos compromissos éticos e assim, desnudos de aparências nos jogarmos na boca, um do outro?
Este envolvimento não terá nome.
Não terá nome, mas terá hora.
Horas de esquecimento físico, totalmente entregues ao sabor dos nossos corpos, e de alguns versos, que diremos rindo, bêbados de poesia.
Ah, se perdermos o chão, e jogarmos longe toda prosa, ficarmos só eu e você, no tato, descobrindo o que não se pode ver?
E ai? Que importância fará?
Não muda nada.
O céu continuará sendo céu, a serra continuará sendo serra, a vida pra ganhar custará tanto quanto antes.
Em um tapa aos bons costumes não fará importância alguma se não ligares no dia seguinte, e não será preciso explicar nada, só será necessário grudar sua pele lisa no meu rosto e pedir de novo o que já te dei noutro dia.
Só vinho, musica poesia e sexo.
E sem nenhum problema em ser assim.
Se perdermos a compostura, e brincarmos algumas horas de não sermos ninguém?
Sermos bichos, sermos personagens, sermos crianças sem nome.
Minha coxa lisa em seus cabelos desalinhados.
Sua boca úmida em minha pele quente.
Minha boca quente em sua pele úmida.
Compasso, ritmo, risos.
Sem nomes, sem rótulos.
...e se?
Se, seria.
Se, faria.
Se, daria.
Se...



quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulher, gente e ponto!

Eu não ia escreve nada sobre o dia internacional da mulher, mas diante do tanto de marmanjo chorão com que eu me deparei hoje sou obrigada a meter minha colher neste caldeirão de mensagens e textos que temos hoje.
O que tem de homem indignado com o dia da mulher não é brincadeira.
E o comentário que mais ouvi foi de que deveria ter o “dia do homem ” também.

Meninos, parem de birra!
Se vocês querem colo é só falar que a mulherada dá.
Alias damos colo, damos abrigo, damos o sangue, damos a vida e o mais que precisarem.

O que está em questão não é um dia para homenagear as mulheres.
Esta data é um dia para refletir sobre a luta por igualdade.
Veja bem meninos, foi preciso muita luta para que a mulher conseguisse o direito de ser Gente.
Gente e ponto. É só isto que queremos.
Não queremos ser mártires, nem musas, nem rainhas...só queríamos ser gente e como tal ter seus direitos preservados.
Direito a vida e a livre manifestação de Ser.

Quando mencionei que esta data relembra as operárias que foram mortas em uma fábrica ao lutar por seus direitos, o balconista do restaurante onde almocei alegou que milhares de homens morrem em guerras e nem por isto tem um dia para eles.
Estes morrem pela causa, seja ela justa ou não, mas é pela causa.
Não morrem simplesmente por serem homens.

Mulheres são mortas, algumas vezes ainda no ventre, só por serem mulheres.
Por séculos as mulheres foram impedidas de aprender a ler e escrever simplesmente por serem mulheres.
Mulheres são humilhadas, agredidas, estupradas e mortas por serem vistas como um objeto ao prazer de certos tipos de homens.
Mulheres, a despeito de sua capacidade, muitas vezes são remuneradas com salários menores, simplesmente por serem mulheres.
Mulheres não tinham direito ao voto, só por serem mulheres.
Entendem? O argumento é: não pode, pois é mulher!
Ou então: não pode, não vai, não deve, pois é “minha mulher”!
Ou ainda não quero, pois é mulher!
Percebem?

Meninos parem de birra!
Acreditem, tudo o que queremos é não precisar de um dia para lembrar a sociedade de que somos gente, tão gente como vocês do outro gênero, e não abrimos mão disto!

Por hora é só...
E feliz dia das mulheres!

sexta-feira, 2 de março de 2012

Alice

De todas as maneiras de amar, não há outro jeito que eu possa entender, do que assim, doendo, doar.
Não me pergunte o que sinto ao te amar, mas só posso sentir que o mundo começa e termina neste seu olhar.
Se soubesse que doeria tanto, eu escolheria não te amar, não deste jeito tão desmedido.
Parte de mim, menina minha, por que saíste de mim e e as vezes me roubas teu olhar?

Pequena e frágil que eras, medo de quebrar-te ao meio, hoje medo de quebrar meu peito
Se no meu peito parte maior é tua, se ao parir me tornei maior, melhor, se os teus olhos são como os meus, o que posso fazer?
Você tem seu destino a frente, um universo onde não quero dominar.

Quero uma pequena parte do mundo que será seu, quero meus olhos nos teus olhos.

Quero tua lembrança doce no findar da lida quando lembrar que me teve por mãe, quero um sorriso nos lábios quando pensar em mim, quero que me tenhas um amor que não seja um fardo, e que este amor que me consome seja uma chama benéfica dentro do teu peito, a te aquecer por toda a sua vida.

Filha, Feliz Aniversário.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fome.

Ele se enrosca em um canto do quarto e espera que passe logo.
Mas não passa.
A agonia que o consome devora sua mente, produz sensações que vão da tristeza a dor, em poucos instantes.
Dói. Dói o peito, dói a alma envelhecida antes do tempo, dói a falta do leite, o leite quente que aqueceria seu corpo pequeno.
Mas o calor não vem, e o corpo se ressente.
Frio. Mais frio do que pensou que podia suportar.
E aquele ar pesado, que consome tudo ao seu redor.
A luz do quarto sendo acessa lhe faria pensar que alguém está chegando.
Mas ninguém chega.
Aquela dor tem nome, agora ele sabe, é fome.
Fome. Fome que humilha seus sentidos e o faz sentir-se como um verme.
Queria ser um cão.
Um cão, ainda que sem dono, mendiga, sem vergonha, um pão que lhe alimente.
Mas ele não. Ele tem vergonha de mendigar.
Vergonha de sua fome.
Vergonha de seus braços tão pequenos que nada produzem, ainda.
Vergonha de seus cabelos, sempre lavados com sabão.
Vergonha de suas roupas sempre encardidas.
Vergonha das unhas, que não sabe cuidar.

Vergonha de ser gente e de querer ser um cão.

Naquela hora, ele sente fome e frio.
Não há outra sensação que possa lhe alcançar.
Ele fica quieto e dorme.
Dorme.
Irá passar durante o sono.
Ou quem sabe irá acordar e no meio do quintal o estará esperando o boneco que pediu no Natal?
...ele é gente e queria ser cão. E sendo cão, queria não mais acordar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Segredos de menina.

Eu era só uma menina, e era bom.
Os prazeres eram simples,os contatos suaves, e as descobertas constantes.
Éramos um grupo de 10 crianças, todos da vizinhança, entre meninos e meninas.
Brincávamos muito de "esconde-esconde", sabe né? Um grupo se esconde, enquanto um tem a missão de procurar. O primeiro a ser encontrado começa tudo de novo.
Nesta fase já começam a despertar os primeiros interesses pelo sexo oposto (ou não, vai de cada um) e quase sempre na hora de esconder procurávamos ficar perto de quem nos interessava.

Uma tarde eu me enfiei em um canto, atrás de uma pilha de pneus gigantes.
O garoto mais interessante da turma veio se esconder ali também.
Ficamos pertos o suficiente para eu sentir o calor do corpo dele, misturar ao meu.
O peito dele tocava minhas costas e eu podia sentir sua respiração em minha nuca.
Parte do braço dele tocava o meu.
Silêncio.
Só o cheiro dele e seu toque, sutil. O resto todo havia sumido.

Logo os amiguinhos foram sendo encontrados, mas nós dois ficamos ali, imóveis, fingindo não perceber que já era hora de sair.
Eu, imaginando se ele estava sentindo o mesmo que eu, aquele desfrute inocente do corpo do outro.
Subitamente, o gesto:
Virei o corpo lentamente, fiquei na ponta dos pés e lasquei um beijo, em seus lábios.
Não fiquei para perceber a reação, sai correndo, rindo.
Depois ficou aquele olhar cúmplice, de um segredinho só nosso, sempre que brincávamos de esconde-esconde, dávamos um jeito de nos esconder juntos...nunca mais houve outro beijo, mas ambos sabíamos o quanto era bom sentir o contato, ainda que vago, do corpo do outro. E nos bastava isto:
O calor, o cheiro, o leve roçar dos braços e o tempero fundamental: era o nosso segredo, inocente e saboroso.

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