sábado, 22 de setembro de 2018

O Rato


A ratazana do nosso amigo cronista trouxe à minha memória as diversas ratazanas de minha vida.
Não falo daquelas subjetivas, para as quais não damos, nem temos jeito.
Falo do bicho, o rato, o roedor.
Meninice miserável por infinitos motivos que não os sociais, os ratos foram companhia de quase toda minha infância.
Horripilantes, subiam pelas paredes, construíam suas tocas dentro do reboco, tomavam conta de tudo.
Pariam suas crias minúsculas em ninhos construídos por todos os cantos da casa abandonada.
Nós, eu e minha irmã, fugíamos deles como podíamos. As vezes simplesmente não podíamos.
Eles saiam do saco de pão e tínhamos de deitar fora aquele que talvez fosse o único alimento do dia.
Resumo da ópera: os bichinhos infernizaram boa parte dos meus pesadelos por muitos anos.
Adulta, vida tomou outros rumos, pegamos o boi pelo chifre e passamos a ter vida decente. Em uma vida decente não há espaço para roedores, sobretudo os ratos.
Todavia, eles pareciam dispostos a voltar. Ao menos um estava lá. Eu, e toda a família, sim, agora a casa tinha uma família, percebemos.
Tudo começou com a banana.
A fruteira que descansava sobre a mesa aparecia revirada, as frutas com largos buracos, o interior da banana devastado.
Colocamos a fruteira em cima da geladeira. Não adiantou.
Dia seguinte, lá estava a prova de que o bicho é ótimo escalador.
Recheamos o interior da banana com chumbinho, produto clandestino, irregularmente utilizado como raticida, a fim de finalizar o bicho.
Não adiantou. O infame comeu todo o contorno da fruta, as regiões não prejudicadas pelo veneno e largou o resto lá, num gesto de profundo desdém com as tentativas humanas.
Mal sabiam que o avô do rato em questão, morrera desta forma, deixando as novas gerações o aprendizado de rejeitar qualquer poção de chumbinho que acaso lhe fosse oferecida.

Pois bem, sendo assim, restou a brilhante ideia de colocar uma ratoeira.
Sim, ratoeira. Descobrimos que existem ratoeiras de vários tipos. Escolhemos a que parece uma pequena gaiola, que se fecha, tão logo o bicho entra.
Dito e feito, armado o bote, pegamos o sujeito.
Dia seguinte lá estava ele.
Pequeno.
Olhos miúdos, pretos. Pelos cinzentos.
Patinhas minúsculas.
Merda!
E agora? Fazemos o quê? Damos uma paulada nele? Afogamos? Jogamos álcool e acendemos o fogo?
É só um roedor. Merda! Mil vezes merda!
Não dá para matar a pauladas um filhote peludo. O que fazemos agora?
Por um segundo tudo perde o sentido, a higiene, o medo, o nojo.
Caramba, é só um bichinho.
Ok, é feio. É sujo. Mas é só um rato, catzo.

Bóra, lá.
Rato na ratoeira, família inteira dentro do carro.
Destino? A pedreira do bairro.
O filhote de roedor olha a cela aberta, horizonte de pedras, água, resquícios de passagem humana.
Não podia ser verdade. Eles estavam libertando-o.
Saiu, reticente.
Certamente iriam persegui-lo, acuá-lo, espancá-lo com uma vassoura.
No mínimo lhe dariam para alimentar o bicho cativo da casa, o gato.
Mas não. Ganhou o mundo, livre.
Correu pelas pedras sentindo o cheiro de mato, água e restos de alimentos pelos cantos.
Depois de ganhar certa distância olhou para trás, na certeza de que nunca esqueceria aqueles três pares de olhos que o fitavam.
Contaria aos seus netos roedores sobre o dia em que uma família o amou um pouco. Só um pouco.
E eu, a humana do lado de cá, com meu esposo e filha, pude enfim voltar para casa e deixar naquela pedreira, livres, todos os ratos de minha infância.

(Postado no blog aspirinas.urubu.com em 13/09/18)

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