quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Meu Ciclo

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - Ultimo texto do projeto de blogagem coletiva realizado em 2018)

É fim de ano e para mim o fim de uma era inteira.
Todos os ciclos do meu universo começam e terminam em mim. E só dizem respeito a mim e aos que caminham ao meu lado. Dentro do meu útero sinto as dores necessárias a renovação, a pessoa que sou se orgulha ao olhar o que eu poderia ter sido, as vezes ainda se recente dos sonhos jamais alcançados.
Constato que nenhum desses sonhos era de fato meu, mas eram sonhos coletivos, plantados no peito de toda jovem mulher desde o princípio dos tempos.
Um amor, o par de alianças, joelhos no chão, o pedido. Uma casa, um cachorro, os moveis novos nas paredes revestidas com carinho. Depois viriam os filhos, um, dois, quem sabe três. E a casa branca, agora com paredes sujas de mãozinhas, teria sempre brinquedos espalhados pelo chão. Viria a vida, com regras, ordem, cadernos de estudo sobre a mesa da sala. Os filhos cresceriam, se formariam, amariam e me dariam netos. Haveria ordem, haveria regra e a regra seria continuar este ciclo que os leva a ser o que todos são. Às vezes eu pegaria um álbum de fotos onde eu me veria com o vestido de noiva que jamais usei, e lá eu estaria tão bela e tão feliz... eu choraria escondido de saudades da menina que fui.
Mas a vida não se fez assim, minha história começou do fim e eu me vi ninando o bebê que pari sozinha. As paredes sempre tão sujas, a casa cheia de nódoas, os cantos todos cheio de uma tristeza que não ia embora.
Quando dei por mim me vi pintando aquele quartinho para receber a bebe. Juntei cada centavo de todas minhas economias, comprei tecidos coloridos para revestir potes de sorvete, adornei com cores a velha janela, enchi de fitas e bordados, eu ia ter uma menina. Uma princesa, a princesa que eu nunca fui. Tive medo, eu ia parir uma igual. Alguém que também traria no ventre o poder da terra.
Mas eu consegui. Pari e fui mãe. A melhor que pude. Sem sonhos. Sem vestidos de noiva. Sem uma casa ou o abrigo de um par. Costumo dizer que fui mãe sem jamais ter sido filha. Fiz o que deu. E deu.
Dos três filhos que eu teria, me veio uma. E ela me bastou como jamais pensei. Do grande amor que eu teria, me perdi, e isto jamais passou.
Da história que eu sonhei um dia, nada ficou. Nada. Desconstruí as fadas, criei minhas bruxas, lambi minhas feridas, limpei com minhas lágrimas toda dor que senti sozinha. Sozinha. E assim aprendi que na hora do acerto seremos somente Deus e eu.
Da plateia, dos que comentam, dos que apontam, dos que pensam saber mais do que sabem, não haverá ninguém. Ninguém responderá por mim e explicará minhas razões.
O espelho inerte gritará todas as verdades e eu vendo quem sou cantarei a certeza de ser quem devia.
Terei sempre a certeza de ter dito sim todas as vezes que pude. De ter dito não, mesmo quando quis muito, mas o não era o único caminho digno. De não ter fracassado na hora da escolha e jamais ter plantado ervas danosas pelo caminho.
Este ano um ciclo se fechou. Enterrei quem mais amei. Bani de minha vida a última culpa que eu carregava. E percebi que minha história ainda não acabou, talvez, esteja só começando.
Não tenho a velha foto vestida de noiva para olhar, mas carrego dentro de mim todos os sonhos que posso ter. Se o passado não foi um conto de fadas o presente é a melhor história que eu poderia escrever e eu me dei de presente ser feliz. Posso, devo e mereço.
A história não acaba aqui. Ela se fecha e recomeça e eu sempre irei seguir algo além dos meus instintos. Sempre direi não, quando o não for a única resposta digna. E no fim isto tudo só interessa a mim.
Carrego a certeza de que quando mais este ciclo se fechar, só uma pessoa estará lá me esperando: a pessoa que eu sonhei ser. O ciclo é meu e fim.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Minha escrita

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Meus olhos passeiam pelos livros sobre a estante e vejo muitos que ainda não li. Como objetos de decoração enfeitam minha sala e me lembram sobre quem sou. Leio meus velhos textos, alguns perdidos em minhas pastas de arquivos outros publicados em meu blog, esquecidos com apenas cinco visualizações. Nunca me importou que não leriam os meus textos. Me importa escrever, enquanto escrevo eu vivo, eu sou.

Dia destes, nas redes sociais, havia uma postagem perguntando quem passaria três meses em uma cabana no meio do nada, sem energia elétrica, sem internet, sem celular. Percebi que ficaria, tranquilamente, em um lugar assim. Nesta hora senti a dor de pensar em não ter caneta e papel. Não sou capaz de viver sem escrever, escrever sempre foi minha primeira necessidade.

Quando eu era criança, fiz um pequeno caderno de poesias. Tentava rimar a vida com letras infantis. Em uma de minhas rixas com minha irmã ela rasgou o caderno. Primeira vez que entendi que minha escrita seria para sempre minha vulnerabilidade. Eliminar o que escrevo seria para sempre uma maneira direta de me atacar.

Anos mais tarde, pouco antes de consumar meu divórcio, meu ex-marido juntou todos os meus cadernos e os jogou no lixo do banheiro, fez um monte no quintal e ateou fogo. Primeira vez que entendi que minha escrita pode ofender. Ofende não explicar, não dar nomes, ofende quando canto o conto e não explico se é meu, ofende sentir o que o outro sente, fazer verso com a poesia alheia, compor uma crônica e pode falar de quem eu quiser.

Ofende, pois meu sentir é antes de tudo efêmero e pode ser, inclusive, seu. Minha escrita não tem dono, fala de mim e fala do outro. Fala do amor que minha amiga conta, fala da saudade que temos e que arrastamos sem nunca, nunca, confessarmos.

Escrevo como quem costura, ponto a ponto, sem o menor compromisso com o manequim. Eu rasgo minha escrita e a reconstruo com rendas e babados, com cores e adereços, pinto e bordo este tecido fino, tão branco, que é a folha na tela do computador. Eu escrevo cantando pelas ruas, trechos perdidos que gravo em áudios, na esperança que cada frase faça um dia sentido. Eu escrevo como quem confessa o amor que tenho e nego, escrevo como quem mente e vive, como quem chora e morre. Minha escrita será minha única herança e meu maior desassossego.

Escrevo para dizer que vivo e viva permaneço em cada letra.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O Tempo e eu

(Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br)

Nestes anos todos quanto de mim ficou pelo caminho e principalmente quanto do caminho ficou em mim.

Mudei de emprego. Trouxe comigo amigos queridos e fiz outros pelo caminho.

Profissionalmente devo dizer que aprendi, reaprendi e aprendi de novo, justamente aí descobri que deveria aprender tudo novamente. E assim, sigo ganhando meu pão como quem brinca, pois quem trabalha com o que ama recebe salário dobrado.

Também casei de novo. Pois é cara, eu fiz isto. Nos últimos anos casei pela segunda vez.

E faria de novo. E de novo. Quando já se perdeu tanto no caminho você perde, também, o receio de perder mais. Ser feliz não é um risco. Ser feliz é uma escolha. E eu escolho ser e fazer feliz, nada menos.

Minha filha cresceu. O tempo passou tão depressa, de fato, tanto tempo fez dela mulher, 22 anos de pura inquietação. E eu ainda estou aqui tentando entender onde faço parte disto tudo. Onde é que faço parte dela. Se é que faço.

Coisas boas permaneceram.

Amigos, minha mãe, a vontade de estrada. Também permanece a certeza de que só o incerto me explica. Continuo não dando a mínima para alguns velhos conceitos. Continuo me permitindo amar o outro, tocar o outro, viver o outro.

Continuo gostando de gente. Continuo cuidando da minha vida. Só da minha. Já é o bastante. Continuo não dando satisfação do que faço para quem absolutamente não tem nada a ver com isto. Continuo gostando de olhar as pessoas nos olhos e para tanto é necessária boa dose de integridade. Com o tempo aprendi que fidelidade e lealdade são escolhas. Não nos é natural. Nossa natureza insana é animal, negar ela é escolha consciente em momentos decisivos.

Acredito profundamente em velhas verdades que aprendi e rejeito outras que jamais aceitarei por convenção. De todas as verdades que carrego a que me cativa mais é que diz que toda convicção é uma prisão. Me permito hoje não ter nenhuma convicção, ainda que eu morresse por algumas.

O fato é que os anos, todos eles, nos trazem muito mais quer rugas e cabelos grisalhos. E eu os tenho aos montes. Os anos nos trazem esta coisa pulsante que somos nós, dentro deste corpo que segue indo embora.

Eu sigo e juro, tento não parar.

A vida, esta não para mesmo, e tenho certeza que ela tenta não me devorar.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Meu novembro Azul

Publicado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br

Novembro é mês de meu aniversário.

Pois é. Meu velho pai resolveu morrer em novembro.

Dos muitos desaforos que já me fez na vida, este certamente foi um dos maiores.

Meu novembro sempre tão azul este ano se vestiu de luto.

Eu me vesti de luto.

Me vesti de luto de um jeito que jamais pensei.

E o luto não é coisa ruim. É rever uma vida inteira, uma história inteira, perceber nuances que só a ausência absoluta nos dá.

A morte é a mais sábia das professoras, a melhor das mestras, a mais silenciosas das lições.

Estou cá quietinha, ouvindo o que ela tem a dizer.

Meu pai que em vida muito me faltou (muitas vezes), também muito me ensinou. E agora é a única coisa que realmente importa.

Este novembro cinza roubou de mim todas as borboletas azuis que meu pai já trouxe, mas não tirou de mim a certeza de que esta data é minha e ninguém poderá me tirar isto.

Tenho particular predileção por aniversários, dentre todas as outras comemorações.

Não gosto das outras datas. Não gosto da obrigatoriedade, do estar junto como imposição, do festejo como única opção. Os almoços, jantares e brindes sempre deixa uma falta de gosto quando não cumpridos. Estas datas coletivas (ano-novo, natal, dia das mães, dia dos pais) tem uma imposição que me azeda, enquanto que a data de nascimento de uma pessoa é a data comemorativa realmente impactante da vida dela. E só dela.

Realmente é o ano-novo particular, onde se pode fazer, ou não, o que quiser

Pratico isto com excelência. E me esquivo ferozmente de quem tenta fazer do meu aniversário uma data comemorativa empacotada.

O dia é meu. Só meu. Dele faço e desfaço como quero. Aliás geralmente passo o mês inteiro de novembro desta forma. Meu aniversário é justamente no último dia do mês. Que delícia! São 30 dias repensando minha existência, observando as mudanças físicas e psíquicas ao logo dos anos.

Quando criança e até minha filha nascer esta data gerou certa angustia. Naquela época minha felicidade dependia dos outros. Se “ele” ia lembrar, aparecer, me beijar. Se, se, se.

Depois que me tornei mãe a data de aniversário mais importante do meu universo passou a ser a da minha filha. Meu mundo passou a girar em torno dela, em todos os sentidos e meu aniversário chegou a passar despercebido.

Depois de quase 20 anos escrevendo algo a respeito de minhas expectativas para aquele momento eu simplesmente passei a ignorar meu aniversário. Até que que minha filha cresceu e passou a lembrar da minha própria importância. Lembro o primeiro cartãozinho me parabenizando que ela deu. Pluft! De repente eu percebi que ainda era. Ainda estava aqui e minha história, na pratica, é só minha. Ninguém, nem os nossos filhos, podem tirar de nós a individualidade. Ela passou a tratar meu aniversário como se fosse algo realmente importante. E devolveu para mim o meu próprio olhar.

Durante todos estes anos se existiu uma pessoa que nunca esqueceu meu aniversário esta pessoa foi meu pai. Mesmo durante todos os anos que ficamos sem nos falar, ele sempre enviou ao menos um cartão nesta data. E cada cartão lindo! Diversas vezes mandou flores no meu trabalho, ou apareceu com um único botão de rosa na hora de saída do expediente. Com todas nossas infinitas diferenças devo dizer que meu pai me ensinou perfeitamente como eu deveria ser tratada. Aprendi a não abrir mão disto.

E este novembro que começou com uma ruptura sem volta terminará com meu aniversário. 43 anos para serem repensados e talvez mais da metade de minha vida já vivida.

Bendito sejam todos os novembros azuis de minha vida e que mesmo este, assim tão predominantemente cinza, possa ser de agradecimento ao privilégio da vida, ainda que com a inegável e gritante presença da morte...afinal, a morte nada mais é que o outro lado de uma mesma moeda, a moeda da existência.



terça-feira, 13 de novembro de 2018

Te nego

Tantos anos se passaram e você ainda está aqui.
Durante estes anos todos escrevi retalhos de sentimentos que não eram meus, pedaços de papéis perdidos, arquivos deletados por engano.
Textos inteiros escritos, sem você, até que aos poucos fui parando de escrever.
Simplesmente aconteceu.
Parei de falar do amor alheio, como se fosse meu.
Parei de falar de mim, como se fosse outro.
Deixei de escrever como quem deixa um vício.
Primeiro aos poucos, depois determinadamente.
Deixei de escrever como quem morre e morta deixei de sentir.
Neste tempo imenso que me separou de ti, todas as vezes que eu escrevi foi para negar tua existência.
Durante todos estes anos, cada texto meu foi para te esconder de mim.
Contei histórias que não eram minhas, amei amores que não eram meus, vesti vestidos emprestados, me escondi nas paixões alheias, me perdi no beijo jamais dado, me escondi de ti escrevendo o amor do outro.
Neguei que tua existência contamina a minha, neguei que o teu toque me aprisiona, escondi que o teu beijo me detém.
Durante cada minuto de todo este tempo a minha escrita sempre foi tua, dissimuladamente tua.
Eu contei amores de minhas amigas, copiei os versos dos amigos, contei o amor alheio, para te negar, te esconder, para nunca te cantar. Eu rasguei cada uma das poesias que escrevi para ti.
Durante todos estes anos eu neguei você.
Neguei que minha história se perdeu na sua, neguei que meu corpo foi teu, neguei que deixei você partir.
Durante todos estes anos escondi você, escondi este amor dilacerante.
Todas as páginas que eu já escrevi omitiam você, mas você estava lá. A omissão gritava o teu nome.
Os meus versos te escondem, minhas linhas te denunciam, os amores alheios que conto como se fossem meus, gritam o amor que é teu e eu nunca dei.
Tanto tempo já passou e você ainda está aqui, em cada uma das poesias que eu nunca escrevi.
Você me olha através do teclado e implora por meu amor. Nega que partiu, nega que mentiu, nega que esqueceu.
E eu, ferida tantas vezes, por seu adeus, renego sua presença, escondo que sinto dor, me entrego a tua inexistência.

(Texto postado originalmente no blog aspirinasurubu.com.br - dia 08/11/2018 - Dia a cremação de meu pai, Silvio de Carvalho Jorge, que faleceu em 07/11/2018)

Gente como eu


Eu acredito piamente em Deus, não consigo mais acreditar nos homens...
Zé Geraldo


A essência da minha escrita é o ser humano, a vida e a liberdade

Eu ainda acredito em gente. Gosto de gente. Gente de todos os tipos, gente para todos os gostos. Até os do contra, eu gosto.

Gosto de gente que ri; me identifico com quem segura o choro, mas se chorar, gosto também. Gosto de gente que geme na hora da luta e sabe gemer na hora do amor. É necessária prática para gemer de amor.

Amo gente que quer sorrir, mas não tem dente. Ri assim mesmo e eu rio junto, de aparelho. (Gosto de ver que o vazio de dente não lhe fez vazio de vida).

Gosto de gente que abraça e gosto de gente que foge do abraço, meio com medo de que você chegue muito perto e perceba que ela não tem perfume. Nem viço.

Gosto de ouvir as diversas gentes, gosto que tenham voz aqueles que dizem o que não acredito. Eles dão sentido a tudo que creio.

Gosto de quem fala baixo, acho charmoso. Invejo. Gosto de quem fala alto, me identifico.

Gosto de gente como quem brinca, como quem cria, como quem aprende. Observar me ensina, me molda, me aperfeiçoa e, às vezes, me mete medo.

Em algumas gentes que olho, cá de fora, vejo uma mácula que apodrece minha alma e envergonha minha natureza. Ai eu choro. Choro baixinho, acreditando que talvez exista esperança para aquele tipo de gente.

Admiro o bruto, o egoísta, o ignorante. Admiro sua capacidade de se assumir como tal. O respeito e observo.

Mas existe um tipo de gente do qual tenho asco: o hipócrita. E dentro da categoria de hipócritas a que mais me causa nojo é o que usa de hipocrisia através da religião. Toda minha vida se baseia na tese da grandeza da criação. Todas as minhas crenças se baseiam na irmandade de nossa matéria, na infinitude de nossa alma e na busca pela unidade.

Tenho asco daqueles que usam do sagrado, do divino, para justificar suas mazelas, suas escolhas, suas falas torpes. Usam da religião para propagar suas próprias pretensas e mentirosas santidades. Muitos jamais tiveram em mãos, como leitores, o livro que intitulam sagrado. Não gastam seu tempo para ler. Como marionetes em um balé macabro, repetem frases isoladas, se apoderam de um direito que não lhes pertence; tiram vidas com o fel de suas salivas. Tudo em nome da fé.

Hipócritas. Desde o princípio dos tempos vocês existem. Sob a pretensa desculpa de serem defensores do Criador (como se acaso um Criador fosse precisar de vocês para O defender) destilam seus próprios orgulhos enquanto escondem na calada da noite a orgia que alimenta sua alma podre.

Deste tipo de gente eu tomo distância segura, mas não muita, mantenho certo desejo insano de vê-los repetindo suas mentiras. Pois tão certo como vive minha alma o dia do acerto há de chegar, para todos nós. E hoje este é meu único alento. A certeza de que ninguém foge do próprio espelho.
Bora, pois amar ainda é minha sina. Quero continuar amando, todas as gentes, como gente que sou.

(Texto postado originalmente em Aspirinasurubu.com.br)

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Fragmentados

Nossos corpos no espelho.

Nossa altura, nossas mãos, nosso tom de pele.

Teus olhos sobem por minhas curvas indo de uma tatuagem a outra.

Elas combinam e eu gosto.

Me aconchega melhor no teu abraço, me enlaça com tua perna e o espelho é uma pintura. O espelho está lá, mas nós já não o vemos.

Nos minutos contados das horas todas que temos, perdemos a noção de espaço, o espelho quebrou. Em cada marca dos nossos rostos, no flagelo de nossos corpos, os anos. Todos os anos que nos separaram. A tua boca desenha a minha, tuas mãos me procuram, me encaixam, nossas pernas se perdem e nos teus olhos me vejo inteira. O espelho quebrou, teus olhos não, e eles refletem os meus.

Gosto quando as gotas do teu suor caem sobre mim, molham, aquecem, sinto teu cheiro nelas. Me ensopa com teu calor, me invade cheio de vontades, me sacia com tua força.

Os cacos de vidros, do espelho quebrado, se espalham pelo quarto, se perdem nos lençóis e nos cortam. Não sentimos nossos corpos e nossa cama tem sangue. As paredes têm sangue, tua boca tem sangue. Tantas promessas perdidas em noites mal dormidas e o sangue nos cala. O sangue que do meu corpo jorra derruba as paredes. Não temos mais teto, o céu é púrpura. O sangue é meu. Os cacos do espelho furam minha carne e o espelho sou eu.

Meu rosto no espelho fragmentado, pedaços de mim, sem você eu não sou.

O céu desaba sobre nós. Em gotas pesadas, lavam nossa cama, tiram o sangue da minha pele branca, arrastam os cacos do espelho para longe de nós. O que somos se esvai com os cacos, com a chuva purpura do céu púrpura. Minha boca já não te encontra e o silêncio nos sufoca. Já não temos o chão. Sem teto, sem paredes, sem ter onde pisar, só nos resta a cama com seus lençóis manchados. O espelho quebrado não reflete nossa pele, sem o espelho não sei quem eu sou.

Recolho em meio aos lençóis os poucos cacos que restam. Me corto, me rasgo, não tenho mais sangue. O espelho quebrado levou consigo todos os meus planos. A cama flutua a ermo no ar e o céu nos redime.

O sangue que jorra do espelho quebrado lava o horizonte. Todos os caminhos têm sangue.

O espelho partido leva para longe de nós o que temos. Já não somos e nem percebemos.

(Texto postado originalmente no blog www.aspirinas.urubu.com)

sábado, 22 de setembro de 2018

O Trem é meu

Nascida e criada em São Paulo, filha de paulistanos, descobri que amava esta cidade quando casei com um mineiro.

De tanto ouvir ele elogiar suas terras, a comida, o sotaque, o queijo, o café, as paisagens, tudo sempre muito melhor que aqui, acabei por agarrar um certo “ranço” desta falação toda e a inquirir o que diabos ele tinha vindo fazer aqui, já que nada prestava.

Ele sempre respondia: “trabalho, trabalho é o que nos traz, todos, para cá. Aqui pode faltar emprego, carteira assinada, mas trabalho não falta. Aqui se vive até do lixo. ”

Pois é. Aqui se trabalha o tempo todo. Mesmo quando não se trabalha.

Os trens estão sempre superlotados, levando e trazendo as gentes de todos os cantos. Em sua maioria, levando e trazendo de seus empregos. Fico pensando como será quando resolverem o problema do desemprego. A CPTM (Companhia paulista de trens metropolitanos) que já vive em colapso irá transbordar, definitivamente.

Mas os trens também dão emprego a muita gente.

No trem tem cancioneiros, pedintes, atores, músicos, e sobretudo vendedores, muitos.

Paulistano não fica desempregado, paulistano vende água no farol. Ou no trem. Aliás no trem vende-se de tudo

Ralador de queijo, descascador de batatas, controle universal para televisão, salgadinhos, balas, biscoitos, carregador de celular e se você souber esperar vende-se até o celular, que pode ter sido roubado de outro passageiro, como você.

Vale lembrar que é proibido o comércio ambulante nos trens. Somos todos cúmplices, comendo a batatinha.

Mineiro chama tudo de trem, mas trem mesmo, com a nossa proporção, Belo Horizonte não tem.

O trem aqui é rotina, é parte fundamental das paisagens.

Sou moradora do extremo lesta da cidade de São Paulo, justamente ao lado de uma das mais movimentadas estações de trem de todo o município.

Quando criança meu pai, que vinha nos ver periodicamente, me levava para passear de trem. Me ensinou tudo. Esperar na plataforma antes da faixa amarela, entrar no vagão antes do sinal, dar lugar para os idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais, segurar-se nos apoios quando estivesse de pé. Mal sabia ele que eu nunca sentaria e que jamais seria necessário segurar-se: a multidão exprimida faria isto por mim.

Nós, os moradores da periferia, chamamos o centro da cidade de “ São Paulo”. Como se fosse outro mundo, outra cidade. E as vezes acho que é. O mundo acaba em Itaquera, do lado do estádio do Corinthians, de lá para cá ficamos esquecidos, povoando uma parada de trem onde levamos mais tempo para entrar na estação do que no percurso pretendido.

Filas intermináveis se formam as seis da manhã, rodeando toda a passarela, saindo até a rua e ganhando tamanho calçada afora.

Mesmo assim, com suas intermináveis filas, o trem é para mim o melhor transporte de minha cidade.

O trem é lúdico, quase que romântico. O trem tem poesia. O trem tem, inegavelmente, calor.

O trem com seu embalo, tem algo que nenhum outro transporte possui. Ele te chacoalha, quase te colocando para ninar, e aos solavancos te acorda, lembrando que ali não é ninho.

O trem, com sua interminável distância entre uma estação e outra, permite que se crie laços.

Houve um tempo em que os grupos se dividiam em vagões: o vagão dos evangélicos, onde se entoavam hinos ao Criador e depois sempre um sermão falando de amor e perdão, onde todos podiam se aconchegar; o vagão do baralho, da cacheta, do buraco, onde era impossível dormir ao som dos brados dos jogadores, o vagão do samba, onde sempre rolava um pagode, uma paquera e por fim o vagão dos maconheiros. Sim. Maconheiros. Era permitido fumar cigarro nos trens de minha meninice e daí para a maconha era um pulo.

Nos últimos anos nada disto é permitido mais. Mas os laços continuam sendo criados e os vendedores continuam encontrando clientes e cúmplices.

O trem não perde seu balanço.

Quando estive na cidade de meu esposo não pude deixar de pensar: ele não tem trem.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 20/09/18)

O Rato


A ratazana do nosso amigo cronista trouxe à minha memória as diversas ratazanas de minha vida.
Não falo daquelas subjetivas, para as quais não damos, nem temos jeito.
Falo do bicho, o rato, o roedor.
Meninice miserável por infinitos motivos que não os sociais, os ratos foram companhia de quase toda minha infância.
Horripilantes, subiam pelas paredes, construíam suas tocas dentro do reboco, tomavam conta de tudo.
Pariam suas crias minúsculas em ninhos construídos por todos os cantos da casa abandonada.
Nós, eu e minha irmã, fugíamos deles como podíamos. As vezes simplesmente não podíamos.
Eles saiam do saco de pão e tínhamos de deitar fora aquele que talvez fosse o único alimento do dia.
Resumo da ópera: os bichinhos infernizaram boa parte dos meus pesadelos por muitos anos.
Adulta, vida tomou outros rumos, pegamos o boi pelo chifre e passamos a ter vida decente. Em uma vida decente não há espaço para roedores, sobretudo os ratos.
Todavia, eles pareciam dispostos a voltar. Ao menos um estava lá. Eu, e toda a família, sim, agora a casa tinha uma família, percebemos.
Tudo começou com a banana.
A fruteira que descansava sobre a mesa aparecia revirada, as frutas com largos buracos, o interior da banana devastado.
Colocamos a fruteira em cima da geladeira. Não adiantou.
Dia seguinte, lá estava a prova de que o bicho é ótimo escalador.
Recheamos o interior da banana com chumbinho, produto clandestino, irregularmente utilizado como raticida, a fim de finalizar o bicho.
Não adiantou. O infame comeu todo o contorno da fruta, as regiões não prejudicadas pelo veneno e largou o resto lá, num gesto de profundo desdém com as tentativas humanas.
Mal sabiam que o avô do rato em questão, morrera desta forma, deixando as novas gerações o aprendizado de rejeitar qualquer poção de chumbinho que acaso lhe fosse oferecida.

Pois bem, sendo assim, restou a brilhante ideia de colocar uma ratoeira.
Sim, ratoeira. Descobrimos que existem ratoeiras de vários tipos. Escolhemos a que parece uma pequena gaiola, que se fecha, tão logo o bicho entra.
Dito e feito, armado o bote, pegamos o sujeito.
Dia seguinte lá estava ele.
Pequeno.
Olhos miúdos, pretos. Pelos cinzentos.
Patinhas minúsculas.
Merda!
E agora? Fazemos o quê? Damos uma paulada nele? Afogamos? Jogamos álcool e acendemos o fogo?
É só um roedor. Merda! Mil vezes merda!
Não dá para matar a pauladas um filhote peludo. O que fazemos agora?
Por um segundo tudo perde o sentido, a higiene, o medo, o nojo.
Caramba, é só um bichinho.
Ok, é feio. É sujo. Mas é só um rato, catzo.

Bóra, lá.
Rato na ratoeira, família inteira dentro do carro.
Destino? A pedreira do bairro.
O filhote de roedor olha a cela aberta, horizonte de pedras, água, resquícios de passagem humana.
Não podia ser verdade. Eles estavam libertando-o.
Saiu, reticente.
Certamente iriam persegui-lo, acuá-lo, espancá-lo com uma vassoura.
No mínimo lhe dariam para alimentar o bicho cativo da casa, o gato.
Mas não. Ganhou o mundo, livre.
Correu pelas pedras sentindo o cheiro de mato, água e restos de alimentos pelos cantos.
Depois de ganhar certa distância olhou para trás, na certeza de que nunca esqueceria aqueles três pares de olhos que o fitavam.
Contaria aos seus netos roedores sobre o dia em que uma família o amou um pouco. Só um pouco.
E eu, a humana do lado de cá, com meu esposo e filha, pude enfim voltar para casa e deixar naquela pedreira, livres, todos os ratos de minha infância.

(Postado no blog aspirinas.urubu.com em 13/09/18)

Dois botões no metrô


Quem a visse agarrada aos dois botões de rosa daria pouca importância diante das circunstancias. São Paulo, horário de pico. Milhões indo, sabe-se lá para onde. Milhões vindo, sabe-se lá de onde. Mas todos resolvem ir e vir, no mesmo horário, e temos a impressão de que todos vão ou voltam do mesmo lugar. Com muita pressa e, às vezes, com muita raiva. Sabe-se lá o motivo.

O fato é que a raiva os faz expor o pior no meio da multidão, na hora de entrar ou sair do transporte coletivo. Talvez seja apenas raiva da vida, de suas incapacidades de serem felizes. Talvez seja raiva do outro: a culpa é sempre do outro. O pai, a mãe o irmão, o amante. Quem tem raiva da vida termina tendo raiva de tudo. Até dos amores.

Enfim… multidão raivosa ou pacífica, como bois conduzidos pelo berrante. Neste horário, sempre multidão. E multidão espremida, antes mesmo de embarcar, esmagados. A plataforma é na estação Brás. Metrô. Transferência gratuita do trem. Uma das muitas experiências extremas de desconforto que o transporte público nos oferece.

Proximidade absurda, beirando a desumanidade.

Corpo com corpo, rosto no rosto, o suor do outro logo será teu também. O cheiro. O toque. As bolsas. O desrespeito que às vezes surge. Quase sempre não. Exercita-se na marra a capacidade de amor ao próximo, você ama muito, ou se torna um psicopata. Paciência a toda prova. Paciência. Isto ela tem de sobra.

Afinal, fora esta paciência heroica que lhe premiou com aquelas rosas.

As rosas. Sim, os dois botões de rosa......que carrega agarrada, junto ao peito. Eu a observo, quase velando por suas rosas. Percebo sua inexperiência urbana e a protejo como um escudo. Afinal, ela tem flores, flores agarradas ao peito. Percebo que sua paciência tem algo de supersticioso. Me aproximo dela emburrada pela multidão que caminha em direção aos trilhos em um balé perigoso. Cair nos trilhos àquela hora equivale a atrapalhar o trânsito e ser enterrada como suicida. São Paulo é assim. Breve te mata, mais rápido te enterra e te culpa.

Sorrio. Mais um pouco meu corpo se cola ao dela. Percebo seu medo, não de cair no trilho, mas de que eu esmague suas rosas. Sorrio de novo e a protejo aos empurrões enquanto embarcamos. Suas rosas intactas, estamos dentro do vagão. Ela percebe meu sorriso cúmplice e sorri de volta e quase no mesmo instante começa a contar sua história.

Ela soma agora 50 anos.Trinta e três anos. Esperou trinta e três anos pra receber aquele pedido de casamento. Ainda menina, 17 anos, no interior de Minas Gerais, conheceu o amor. Mais uma daquelas histórias que não se sabe como, nos desencontros das bocas, se perdem pela vida. Eles se perderam. E casaram com outros amores que a vida lhes trouxe. A vida se encarregou de distanciá-los, mas nunca foi capaz de fazê-los esquecer. A mesma vida cuidou de traze-los de volta. Ela separou-se. Ele enviuvou.

Viúvo tratou de voltar a Minas Gerais. Quase que fatalmente a reencontrou. Mas, cidade pequena, mulher separada, já muito falada, melhor evitar.

Ela o deixa partir, de novo. Mas São Paulo é grande, tão grande. E ela, corajosa, tão corajosa. Aqui existe espaço para amar com menos culpa. Não sem culpa. Pois a culpa é recheio e cobertura de todas as religiões e sociedades. Mas São Paulo, tão imensa, lhe permite esquecer a condenação alheia. Lá vem ela aceitando o convite para jantar. Cruzou o estado para jantar com ele, me conta sussurrando. E jantaram.

Mas a fome que tinham não se resolvia na mesa do restaurante. Era fome de dizer o que não foi dito, por tantos anos. Fome daquelas que se descobre, rápido, que na verdade é melhor não dizer mais nada. Não é preciso. E desta vez, as bocas se desencontram, mas se descobrem no corpo. E ali se encontram. E se perdem de novo, num vai-e-vem que tem o intuito de desvendar segredos e partilhar fluidos. Vejo no rosto dela o gozo que não pode contar.

Na manhã seguinte antes de o relógio gritar, o pedido:“Casa-te comigo, porque tu és o ar que respiro.” Não há tempo pra pensar. Nem tempo para responder. São Paulo não para. Sai apressada, não pode perder o horário na rodoviária. No caminho deixa o buquê mas recolhe dois botões. As rosas a lembrariam que havia um pedido a ser respondido. Aqueles botões lhe convenceriam que havia sentido em tanta espera. Eles fariam dela, alguém especial na multidão.

Os dois botões entraram na estação Brás e saíram na estação Sé. Intactos. Protegidos por meu olhar atento. olhar que a viu se perder na multidão da estação Sé, na multidão anônima. Nunca soube se um dia ela aceitou o pedido. Isto não importa…afinal…é horário de pico em São Paulo e eu preciso ir.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 06/09/18)

A Louca

As roupas sujas, o cabelo despenteado, seu olhar perdido.
A noite toda parece estar dentro dela.

A voz rouca não sabe cantar, a boca seca como seca é a vida.
Os braços que outrora produziam sons, agora pendem ao lado do corpo e nada parece fazer sentido.
A rua longa.
As pessoas, todas, insuportáveis.

Em sua insanidade ela pensa que não a enxergam.
Acredita que só ela vê tudo, pensa que seu corpo enfadonho esconde-se atrás de seu silêncio. Se não responder será como se não estivesse ali.
Então se cala.
Ouve, mas faz que não está lá.
Calada pensa que se torna invisível e invisível não precisa ser gente.
Não precisa mais ter imagem, ter rosto pintado, boca manchada pelo batom.

Pode esquecer os cabelos em um novelo, como se fosse lã abandonada.
A pele sem vida, as mãos ásperas.
O corpo encurvado, que sangra todo mês, insiste em lembrar que ela ainda está ali, mas ela pode mentir, dizer que não viu, que não sabe, que não é.

Anda pelo quintal com fome.
Ela ainda sente fome.
Tanto faz se é dia, se faz sol, se é frio. Não sente frio mais.
O frio que vem de fora não pode alcançá-la. Nem o calor. Nada a alcança.
Nem a voz delas.
Nem a ausência dele.
Só as pedras que junta nas mãos e carrega para um canto do quarto.
Só as pedras a tocam.
As pedras que junta na mão e com calma escolhe no quintal.

As pedras estão ali. Ela não.
Ela já se foi, e só o corpo que sangra, permanece andando pelo quintal.
Louca. Insana. Completamente sozinha.

(Postado no blog www.aspirnas.urubu.com em 30/08/2018)

domingo, 26 de agosto de 2018

Ainda Estou Aqui

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 23/08/18


- Boa noite, filha.

Começo assim aquela conversa via whatsapp.

- Sabe, eu não sei o que dizer...

E não sabia mesmo. Desde o começo, a sensação de oco no meio do estômago.
Parece que me deram um soco.
Continuo escrevendo e reinscrevendo a conversa e enviando quando fica minimamente inteligível.

- Tenho um medo horrível de não encontrar as palavras certas. É primeira vez na vida que não encontro palavras. Eu não sei o que dizer.

(Repito isto diversas vezes e de novo é verdade).
Continuo a conversa, ela não visualizou ainda:

- Só sei que me pergunto onde é que eu estava quando tudo isto acontecia em sua vida.
Como eu pude não perceber???
Como eu pude não perceber?

(Repito isto todas as vezes que me olho no espelho, numa acusação dolorosa)

- Passarei muito tempo me perguntando isto.
Me perguntando como você deve ter sofrido com meus comentários. Me perguntando como te fiz sofrer sem saber. Sem sequer conceber algo assim. Durante muito tempo, irei me perguntar. Mil vezes. Mesmo assim, outra parte de mim não consegue acreditar. Você teve tantos namorados. Por favor me ajude!

E agora de novo é verdade.
Preciso que ela me ajude.
Eu não sei mais o que dizer.
Preciso que ela me ajude a ser melhor do que isto que estou sendo.
Como seria fácil se eu apenas fizesse de conta que estava tudo bem.
Seria o certo. O politicamente correto. O socialmente correto.
Desculpem se não disfarço minha ignorância.
Sou apenas a mãe dela e estou com medo.
Continuo a enviar mensagens pedindo aos céus que ela leia logo:

- Sabe, nunca senti tanta dor. Meu corpo todo dói.
Dói. Eu não posso aceitar, filha, que você omitiu isto de mim a vida toda.
Dói. Eu não sou boa o suficiente para ter as palavras certas.
Não encontro a frase certa para dizer e me sinto um lixo de mãe por isto.
Dói. Eu amo você. Amo.
Eu simplesmente não sei como lidar com isto.
Preciso aprender a te conhecer.
Me ajude filha, por favor.
Não sei mais ser sua mãe...

(Agora eu já estou chorando. Um choro cheio de soluços)
Ela visualizou.
Está digitando.

“Mãe, quem sabe se a senhora parar de se culpar ajude.
Quanto a não saber ser minha mãe pesquise no yotube. Lá tem de tudo. Aprendi a fazer caipirinha lá!”

Corro para o yotube e digito: homossexualidade; bissexualidade.

- Filha, apareceu de tudo lá, mas nada que me ensine ser sua mãe agora.

Ela responde:

“Mãe, eu estava brincando.
Não precisa de manual. Ainda sou eu aqui”.

Sim. Ainda é ela lá.
Mas já não sou eu aqui.
Sorrio.
Percebo de novo que ela mais ensina a mim do que eu a ela.

A Luva

Postado originalmente no blog Aspirinas.urubu em 09/08/18



A mão, sempre enluvada.
Tecido fino protegendo a pele igualmente fina.
Mas estava calor e ela tirou a luva.
Bastou um segundo. Antes que ela percebesse, ele pegou sua mão.
Parte preciosa do corpo, muitas vezes a única parte que ela deixava exposta.
E ele a tocou.
Não levemente, com as pontas do dedo.
Não.
Ele pegou em sua mão e ela não esperava.
Desde o começo, ela não esperava nada.
Ele fez troça com ela dizendo que não sabia beijar.
O beijo dele se tornou então o inferno dela.
Sonhava com este beijo, desejava o beijo.
Ela sabia que se ele a beijasse estaria perdida.
Se perderia e se encontraria, nele.

E então naquele dia, justamente ali, ele pegou a mão dela.
E no instante que ela puxou a mão, soube que se perdeu de si.
Era para esquecer.
Toda lembrança boa um dia passa.
Mas aquela não tinha fim.
E na mão que ela tirou da dele ficou a certeza de estar perdida.
Perdida no cheiro das manhãs, no afeto doce dos cuidados.
O inferno desta perdição, acuado em cada gesto inesperado dele.

E na mão dela, que ela tirou da dele, ficou a surpresa, o susto e a espera.
Espera de mais dele nela.
Espera de noites inteiras, depois de manhas aquecidas.
Espera nos lençóis desbotados, das equinas perdidas.
Espera de canções repetidas, em noites mal dormidas.
Espera dos olhos dele perdidos nos dela, numa espera sem fim.

E na mão que ele tocou, ficou o cheiro e o gosto dele.
E agora, ela beija esta mão, toca seu corpo com ela e espera por ele novamente.
A mão que agora tem fogo, arde de amor.
E ela nunca mais usou luvas.
Nunca mais.

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