sábado, 22 de setembro de 2018

Dois botões no metrô


Quem a visse agarrada aos dois botões de rosa daria pouca importância diante das circunstancias. São Paulo, horário de pico. Milhões indo, sabe-se lá para onde. Milhões vindo, sabe-se lá de onde. Mas todos resolvem ir e vir, no mesmo horário, e temos a impressão de que todos vão ou voltam do mesmo lugar. Com muita pressa e, às vezes, com muita raiva. Sabe-se lá o motivo.

O fato é que a raiva os faz expor o pior no meio da multidão, na hora de entrar ou sair do transporte coletivo. Talvez seja apenas raiva da vida, de suas incapacidades de serem felizes. Talvez seja raiva do outro: a culpa é sempre do outro. O pai, a mãe o irmão, o amante. Quem tem raiva da vida termina tendo raiva de tudo. Até dos amores.

Enfim… multidão raivosa ou pacífica, como bois conduzidos pelo berrante. Neste horário, sempre multidão. E multidão espremida, antes mesmo de embarcar, esmagados. A plataforma é na estação Brás. Metrô. Transferência gratuita do trem. Uma das muitas experiências extremas de desconforto que o transporte público nos oferece.

Proximidade absurda, beirando a desumanidade.

Corpo com corpo, rosto no rosto, o suor do outro logo será teu também. O cheiro. O toque. As bolsas. O desrespeito que às vezes surge. Quase sempre não. Exercita-se na marra a capacidade de amor ao próximo, você ama muito, ou se torna um psicopata. Paciência a toda prova. Paciência. Isto ela tem de sobra.

Afinal, fora esta paciência heroica que lhe premiou com aquelas rosas.

As rosas. Sim, os dois botões de rosa......que carrega agarrada, junto ao peito. Eu a observo, quase velando por suas rosas. Percebo sua inexperiência urbana e a protejo como um escudo. Afinal, ela tem flores, flores agarradas ao peito. Percebo que sua paciência tem algo de supersticioso. Me aproximo dela emburrada pela multidão que caminha em direção aos trilhos em um balé perigoso. Cair nos trilhos àquela hora equivale a atrapalhar o trânsito e ser enterrada como suicida. São Paulo é assim. Breve te mata, mais rápido te enterra e te culpa.

Sorrio. Mais um pouco meu corpo se cola ao dela. Percebo seu medo, não de cair no trilho, mas de que eu esmague suas rosas. Sorrio de novo e a protejo aos empurrões enquanto embarcamos. Suas rosas intactas, estamos dentro do vagão. Ela percebe meu sorriso cúmplice e sorri de volta e quase no mesmo instante começa a contar sua história.

Ela soma agora 50 anos.Trinta e três anos. Esperou trinta e três anos pra receber aquele pedido de casamento. Ainda menina, 17 anos, no interior de Minas Gerais, conheceu o amor. Mais uma daquelas histórias que não se sabe como, nos desencontros das bocas, se perdem pela vida. Eles se perderam. E casaram com outros amores que a vida lhes trouxe. A vida se encarregou de distanciá-los, mas nunca foi capaz de fazê-los esquecer. A mesma vida cuidou de traze-los de volta. Ela separou-se. Ele enviuvou.

Viúvo tratou de voltar a Minas Gerais. Quase que fatalmente a reencontrou. Mas, cidade pequena, mulher separada, já muito falada, melhor evitar.

Ela o deixa partir, de novo. Mas São Paulo é grande, tão grande. E ela, corajosa, tão corajosa. Aqui existe espaço para amar com menos culpa. Não sem culpa. Pois a culpa é recheio e cobertura de todas as religiões e sociedades. Mas São Paulo, tão imensa, lhe permite esquecer a condenação alheia. Lá vem ela aceitando o convite para jantar. Cruzou o estado para jantar com ele, me conta sussurrando. E jantaram.

Mas a fome que tinham não se resolvia na mesa do restaurante. Era fome de dizer o que não foi dito, por tantos anos. Fome daquelas que se descobre, rápido, que na verdade é melhor não dizer mais nada. Não é preciso. E desta vez, as bocas se desencontram, mas se descobrem no corpo. E ali se encontram. E se perdem de novo, num vai-e-vem que tem o intuito de desvendar segredos e partilhar fluidos. Vejo no rosto dela o gozo que não pode contar.

Na manhã seguinte antes de o relógio gritar, o pedido:“Casa-te comigo, porque tu és o ar que respiro.” Não há tempo pra pensar. Nem tempo para responder. São Paulo não para. Sai apressada, não pode perder o horário na rodoviária. No caminho deixa o buquê mas recolhe dois botões. As rosas a lembrariam que havia um pedido a ser respondido. Aqueles botões lhe convenceriam que havia sentido em tanta espera. Eles fariam dela, alguém especial na multidão.

Os dois botões entraram na estação Brás e saíram na estação Sé. Intactos. Protegidos por meu olhar atento. olhar que a viu se perder na multidão da estação Sé, na multidão anônima. Nunca soube se um dia ela aceitou o pedido. Isto não importa…afinal…é horário de pico em São Paulo e eu preciso ir.

(Postado no blog www.aspirinas.urubu.com em 06/09/18)

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