quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

DOLORES

Eu a conheci quando era menina.
Já não atendia por este nome.
A pouco tempo Dolores resolveu me contar quando foi que mudou de nome.
Dolores...
Seu nome já era um decreto de dor.
Dor de fome. Dor de frio. Dor de não ter infância.
Sempre fora assim.
Dolores era um mau agouro.
Ela sempre tinha certeza de que se o nome fosse outro tudo seria diferente.
Depois parou de pensar no nome e começou a ver o mau agouro em si.
Não tinha jeito. Era feia.
Até tentava fazer um charme, mas seu jeito esquelético, seu cabelo sem forma, sua pele manchada, encardida, nada dava a ela a graça de outras meninas de sua idade.
Cresceu maldizendo a vida por sua feiura, e pelo lugar onde nascera.
Um lugarzinho qualquer, perdido no meio do nada, do qual se ela disse o nome um dia, já me esqueci.
Dolores casou!
Ah, sim! Arrumou um marido! Homem grosso, de poucas palavras mas trabalhador honesto que precisou de uma boa moça para cuidar de suas roupas e comida quando sua mãe morreu.
Mas Dolores nunca pode ser mãe e aí creditou a maldição de seu destino, novamente, ao nome.
Era o nome maldito!
Seco o útero e seca era ela.
Não viu outras possibilidades, não pensou em estudar, em viajar com o marido... Agora tinha marido, economias, até a pele deixou de ser tão encardida...
Mas não, nunca pensou em fazer planos com o marido quando descobriu o útero seco.
Só pensava no decreto que havia sobre ela, por onde fosse o vexame de carregar aquela dor iria junto.
Rastejava pelo chão pensando no fardo da vida, lavava as roupas com mãos cheias de nódoas, e as roupas ficavam amarelas como eram suas mãos.
Limpava a casa com uma vassoura suja e a casa nunca ficava de fato limpa.
As teias de aranha tomavam tudo e ela dizia: Nome maldito! Nome maldito! Maldito destino de sentir dor!
Não tinha doença alguma no corpo...só era suja e agourenta.
Seus lençóis eram amarelados, suas roupas eram amassadas, seus cabelos embaraçados.

Um dia Dolores acordou e decidiu ir embora.
Iria para qualquer cidade, em qualquer lugar.
Pegou as economias que tinha, que eram bastante já que não gastava com nem um único corte de vestido. Achava que nada melhoraria o terror de sua feiura.
Deixou uma carta de adeus ao marido, liberando-o para novo casamento com alguém que não fosse seca.
Pegou um ônibus sem destino, e depois outro e outro.
Até que lembrou de uma amiga da mãe, que certamente a receberia.
Lá antes que a outra lhe cumprimentasse ela levantou a mão, quase histérica:
"Não! Não fale este nome! Meu nome é Eulinda! Eulinda e não se fala mais nisto!"
A última vez que vi Eulinda estava bem. Continuava com aquela figura esquelética, mas agora os cabelos eram escovados, brilhantes. Usava um belo vestido floral, fino e leve que lhe dava um ar jovial.
Ouvi dizer que amigou-se com um homem que não pode ter filhos. Ela, generosa, não lamentou por isto.
É dona de casa prendada.
Quando lava as roupas as mãos já não são cheias de nódoas.
Na certidão ainda grita o nome Dolores.
Mas ela nega.
Diz que foi engano do tabelião e que sua mãe sempre quis lhe chamar de Eulinda.
Vai entender..

3 comentários:

MARCO MAIDA disse...

Passou a ser minha guia, Eulinda. Vale lembrar que o prefixo "eu" em grego torna "bom" tudo o que segue no termo: Eu-anjelos (Evangelho), boa notícia. Uma outra coisa bacana para dizer, Bonito e Bom são expressos pelo mesmo termo grego: Kalos. Gosto da Eulinda, além de ser uma auto afirmação da beleza, é uma hipérbole de beleza e bondade, é você!

Eliana Klas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eliana Klas disse...

Marco, meu querido professor, seu olhar sobre minha Eulinda a tornou maior do que é.
Sua leitura desnuda não apenas meu texto mas também as mulheres que estão nele.
Obrigada por permitir que elas sejam quem são.
Bj.

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