quinta-feira, 20 de outubro de 2011

DORCELINO

DORCELINO

Acredito profundamente no "balé" do corpo com a alma.
Preciso encontrar a sintonia entre o profundo abismo de meu ser, e a força do meu corpo.
Sei que posso. Sei que vou conseguir.
Só não sei, ainda, quanto isto irá custar-me. Mas não importa...Ainda que doa, lá no fundo de mim, está a cura que preciso...
Enquanto isto escrevo...
o texto abaixo, "DORCELINO", foi escrito com dores, quase um parto.
Fruto de mais uma de minhas madrugadas...Dorcelino é um personagem que gosto muito e quem passar por aqui verá eu falando dele mais vezes.
Enfim...um pouco de mim, todos os dias...

DORCELINO


Dorcelino estava indo embora.
Ele não sabia para onde, mas precisava ir embora.
Ir embora de todos, ir embora de tudo, ir embora pra lugar nenhum.
Você já sentiu isto?
Se sim então você é capaz de entender Dorcelino.
Dorcelino queria sumir de si mesmo e tentar descobrir o lugar que era dele nesta terra. Certamente não era ali.

Ele tinha os pés grossos do cascalho e da terra, tinha a pele curtida do sol nas colheitas dos cafezais, tinha as mãos ásperas e as unhas sujas.
Aos 48 anos Dorcelino não tinha um único dente na boca.
Mas Dorcelino era gente.
Ele sabia que era gente.
Tentaram lhe convencer de que era ‘burro’, de que era bicho, de que não era nada.
Disseram-lhe até que ele era um tal de “custo-fixo”, que ele nem procurou saber o que era, pois sabia que ele era gente, e isto ninguém lhe tirava.
Quando queriam ser bondosos diziam que ele era “exemplo de superação”, mas isto também ele sabia que não era.
Ele não tinha pai nem mãe conhecida, nunca entrara em uma escola nesta vida, mas conhecia todas as letras e números.
Fazia contas como nenhum outro no cafezal, escrevia versos para as noites de viola nos terreiros das fazendas.
De ‘ouvido’ aprendera a tocar.
Mas ele sabia que tudo aquilo não era nada de “superação”.
O nome daquilo era “escolha”.

Ele tinha de escolher entre despertar pena nas pessoas, ou amor.
Ele queria ser amado, era só isto.
Ele só era gente.
Era um tipo de gente para quem o bem-querer vale mais que o tostão.
Mas agora ele descobriu que ninguém o via como gente.
Era tudo mentira, discurso de gente que acha bonito ser abolicionista, ou democrático, ou ‘do povo’.

Quando Dorcelino avisou que ia embora, fez-se alarido em toda a casa.
Seus patrões, gente que ele servia fielmente como um cachorro, não entenderam nada.
Sua mulher entendeu menos ainda.
Mas agora era hora de ir embora.
Ia abandonar aquele quarto limpinho da casa grande, abandonar seu lugar perto dos seus “donos”.
Sim, ele pensou que era sua “família”, mas isto também era mentira.
Aquela conversa de “Dorcelino é como que da família”, tudo mentira.

Doía naquela alma velha saber que não valia nada.
Seu afeto era visto como interesse.
Amava aquela gente, e os amava de graça.
Ali era sua casa.
Admirava aquela gente.
Sorria para eles pois achava que eram gente como ele.
Mas não eram. Eram feito de uma outra matéria, uma matéria que Dorcelino abominou no dia que se deu conta que existia.
Descobriu que eram feitos de valores falsos, eram feitos das diversas faces da hipocricia libertadora que é bonita no discurso, mas que na pratica era puro nojo de gente como Dorcelino, pobre, preto e iletrado.

Dorcelino fora tratado como bicho querido por muito tempo.
Bicho bem tratado, afagado, alimentado, uma poção diária de ração boa, água limpa e até com sucos algumas vezes.
Mar Dorcelino gostava deles não por nada que eles pudessem lhe dar.
Gostava deles por que era gente e acreditava que eles também fossem.

Dorcelino agora precisava ir embora.
Seu peito ardia de uma dor profunda, a pior que um ser pode ter: a descrença.
Uma pessoa pode perder tudo nesta vida, mas o dia mais infeliz da vida de Dorcelino quem trouxe não foi a fome, nem a miséria, nem a falta de saúde, nem o desamor.
O dia mais infeliz da vida de Dorcelino foi o dia que perdeu suas crenças.
A descrença em tudo lhe socou o estomago com fúria.
Não havia nada em lugar nenhum no qual ele ainda acreditasse
Dorcelino agora não acreditava mais em si próprio.
Todo o esforço de sua vida fora em vão, e agora nem em si ele acreditava mais.
Mas a dor maior é que agora ele não acreditava nos seus semelhantes e sem acreditar no semelhante ele não podia mais crer em Deus.

Dorcelino precisava descobrir o que era a vida afinal.
A vida não podia ser seus sapatos.
Ele sabia que um sapato bonito garantia que ele fosse atendido mais rápido na mercearia, mas a vida não podia ser suas roupas.
A vida não podia ser seus cabelos. Ele sabia que se sua mulher tivesse cabelos bonitos e cheirosos ela era melhor tratada.
Mas a vida de sua mulher não podia ser seus cabelos.

Dorcelino já estava farto de ouvir falar discursos sobre a importância do “SER”, mas no dia seguinte ele via estas mesmas pessoas com o “TER” ardendo nos olhos, lustrando seus sapatos bonitos, olhando para os sapatos como se fossem espelhos.
As mesmas pessoas que falavam bonito sobre o direito de liberdade e igualdade e na verdade olhavam pra Dorcelino com desprezo.
Achavam que a bondosa servidão dele era pobreza de espírito. Achavam que ele era um “pucha-saco” interesseiro que só queria dormir na Casa Grande.
E Dorcelino não era nada disto.
Ele só era gente.
Gente pobre, gente simples, gente que não escolheu de quem nascer.
Mas era gente.
Ele precisava ir embora antes que lhe convencessem do contrário.
Antes que lhe convencessem que era um medíocre e sujo pedaço de pano velho.
Dorcelino apertou contra o peito a carta que seu senhor lhe dera.
Fez que não viu a fingida preocupação quando lhe perguntaram para onde ia.

_ Eu? Eu só vou embora “Seu Dotô”. Carece saber o meu paradeiro não.
Faz de conta que morri. Faz de conta que eu nem existi “Seu Doto”.
Mas não esquece de tomar seus remédios “seu doto”...
...e antes que Dorcelino tivesse terminado a frase o seu senhor já havia lhe dado as costas e entrado na Casa Grande.
E Dorcelino se foi, como se nunca tivesse existido.

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