quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Amnésia

Aos setenta e quatro anos ela acordou se sentindo velha.

Até ontem não havia percebido que aquelas dores nas pernas não eram passageiras.
Até ontem ela acreditava que a dor nas pernas era por conta das escadas. Ah, quantas escadas, por toda parte.
O alongamento diário parecia não mais fazer efeito, diante de tantas escadas.
E as escadas nem pareciam tantas, quanto o falecido comprou aquele sobrado.

Mas naquele dia, quando olhou no espelho se deu conta de que a pele já perdera o frescor da mocidade, os cabelos mal cobertos pela tinta, já eram ralos, sem brilho...
Naquela manhã se deu conta de que sua mão já não tinha a mesma agilidade e firmeza. E ela não havia tomado sua taça de vinho.
Sentou-se na velha poltrona do quarto, e ficou horas olhando a copa das árvores.
Lembrou-se de como aquela paisagem lhe alimentou por tantos anos,
De quantas vezes sua alma só encontrou calma no verde das folhas em contraste com o azul do céu.
Lembrou-se de como, anos antes, ali naquela mesma poltrona ela alimentou seu filho, e antes ainda, ali também amara seu único homem.
E o amara muito e de diversas formas por diversas vezes. Tantas e incontáveis vezes.

Durante toda aquela manhã ela tentou se lembrar de quando havia envelhecido e nem percebera.
Sim, as rugas já estavam lá há muito tempo, disto ela sabia, pois já lhe davam lugar nos coletivos há pelo menos uma década e meia.
Mas aquela canseira... Aquele enfado... Aquele medo de descer as escadas e descobrir que não conseguiria subir novamente...
Aquilo era novidade.


Aos setenta e quatro anos ele resolveu então, ter amnésia.
Colocou um moletom, camiseta com foto do Raul, um tenis no pé...Daqueles sem cadarço,
Passou batom, escolheu um anel bonito e um enfeite pro cabelo.
Desceu as escadas lentamente...
Antes de sair, jurou que iria mudar seu quarto pro andar de baixo.

Afinal, aquelas escadas estavam acabando com suas pernas!!!

Nenhum comentário:

Postagens populares